Dogmas da Razão

Abril tem sido um mês de declarações absurdas vindas de sujeitos importantes, dotados de poder e visibilidade. Na segunda-feira da semana passada, dia 12, o cardeal Tarcisio Bertone afirmou que “diversos psicólogos e psiquiatras já declararam que não há relação entre o celibato e a pedofilia, enquanto muitos outros disseram, pelo que fui recentemente informado, que há a relação entre pedofilia e homossexualismo (sic)”. Quem também nos agraciou com sua sabedoria na última terça, 20, foi o presidente boliviano Evo Morales, dizendo que “o frango que comemos está carregado de hormônios femininos. Por isso, os homens que comem esses frangos têm desvios em seu ser como homens”.

Felizmente a contestação veio como resposta para ambos: contra o cardeal, ativistas gays de todo o mundo e o próprio Vaticano; contra o presidente, os exportadores de frango (!). É que a base argumentativa dos senhores, por mais científica que seja, é já ultrapassada, considerada ridícula pela comunidade acadêmica. Dentro dessa lógica, se Bertone e Morales fossem leitores mais assíduos, influenciados por um conhecimento atualizado e politicamente correto, não profeririam tais besteiras.

Mas será que o problema se resume a isso? Uma mera falta de atualização?

Quem tem alguma leitura sobre o tema da sexualidade sabe que a ciência natural foi, historicamente, uma das ferramentas mais eficientes na sua repressão. Nos séculos XVIII e XIX, quando a razão iluminista se abateu sobre os homens, as justificativas católicas para a privação do sexo já não eram satisfatórias, e o controle do Estado sobre o corpo se justificou pouco a pouco através de estudos cientificamente comprovados.

Muito se fala que o homem pré-moderno era tolo, imerso numa escuridão de ignorância que era gerada e operada pelo cristianismo, mas há algumas decadas há pensadores que apontam para uma simples mudança de paradigma: do religioso para o científico. Se antes a religião era a forma de enxergar e explicar o mundo, além de código normativo de conduta do ser humano, agora era vez da ciência ditar as regras. Tornou-se verdade absoluta e incontestável, com um lugar de alto prestígio nas sociedades.

A crítica aqui não é no sentido de se construir uma anarquia do saber, em que a intuição é mais válida que o empirismo, mas de se levar em conta que a episteme e o método são suscetíveis a falhas. Não se pode apenas tirar a religião do altar para substituí-la pela Razão. Deve-se destruir o próprio altar.

Os dois casos, do cardeal e do presidente, exemplificam bem essa substituição de prioridades. O preconceito com homossexuais é antigo, de origem cristã, mas a justificativa é científica. Até o representante de uma das maiores instituições religiosas do mundo reconhece que o mundo em que vive é cético, e, adepto de uma teologia que convive em paz com a ciência, se vale de argumentos científicos para tentar fazer imprensa e sociedade concordarem com seu preconceito, que tem origem religiosa. Mantém-se os valores e as construções sociais, alteram-se os meios para legitimá-las.

Os senhores bem poderiam buscar novos estudos biológicos e psiquiátricos sobre a sexualidade, buscando novas formas de embelezar sua homofobia, e talvez até tivessem sucesso em seu objetivo. Alguns cientistas naturais insistem em estudar as sexualidades e suas “origens”, pensando que podem explicar tudo. A antropologia, que por relativizar a cultura ocidental ensaiou um rompimento com os paradigmas iluministas, nos diz no entanto que a sexualidade é assunto cultural, manifestando-se de maneira distinta em cada sociedade e fora portanto do escopo dos estudiosos da natureza. Fato que o cardeal e o presidente, limitados pelos dogmas da Razão, estão inaptos a enxergar.

5 Responses to Dogmas da Razão

  1. Paulo disse:

    Texto escrito pós-aula de antropologia, tenho certeza. :)

    Concordo integralmente e acho que o ser humano precisa se conformar com o fato de que nem tudo tem (e nem precisa de) uma explicação, seja ela religiosa ou científica.

  2. AndreiAndrade disse:

    Nossa, opnião que eu tenho há muito tempo! Notei há muito que a tal Razão virou uma religião, o que ela diz se torna verdade quase absoluta, sendo que essa Razão se prova de tempos em tempos errada ou cheia de falhas, até que apareça um novo estudo que desminta tudo do anterior e assim ad infinitum.

    Antes vivia-se de dogmas inabaláveis e incontestáveis, hoje vive-se de verdades contestáveis usadas ao bel prazer do interesse do discursante. É foda, quando será que vamos destruir o altar?

  3. Benjamin Bee disse:

    O componente cultural da sexualidade é real, mas não é o único, e talvez nem o mais importante.

    O que, ao meu ver deve de ser observado, e venho batendo nessa tecla, quase como um sambinha de uma nota só, é que está por trás de toda essa pendenga interesses exclusivamente econômico-financeiros.

    O clero abastado, que perdeu terreno nestes tempos de esquerda, teme perder seu último baluarte financeiro que é o patrimônio material da Igreja nada desprezível.

    Além disso, a disputa pelo poder dentro da própria Igreja evidencia-se a cada dia. Para mim culminou com a malfadada declaração de Bertone. Com ela, pareceu-me que ele pretendia soprar mais oxigênio no fogo que incendeia a Igreja para que Bento XVI queimasse mais rápido. Mais estresse sobre o Papa já estressadíssimo poderia levá-lo à morte, e ainda pode. Assim Bertone seria o sucessor mais adequado, porque ainda mais agressivo que Bento XVI.

    E os homossexuais são o mais excelente bode expiatório para o marketing político de Bertone.

    Ele quer ser Papa o quanto antes para aproveitar melhor as benesses palacianas. E que palácios!

  4. Daniela disse:

    isso do Evo é tradução mal feita, ele falou cobre os efeitos negativos do hormônio no corpo, não sobre orientação sexual. Foi totalemnte mal interpretado, na bolívia homofobia já é crime e foi ele quem aprovou.

    • Pedro disse:

      não, não foi uma tradução mal feita, tanto que o movimento LGBT espanhol mandou uma carta de repúdio ao presidente e o governo da Bolívia mandou uma resposta “pedindo desculpas”.

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