O projeto inútil do substituto de Clodovil

5 de junho de 2009

Na coluna de Mônica Bergamo na edição de hoje da Folha de São Paulo (disponível aqui para assinantes) – que informa que haverá testes gratuitos de HIV em SP na semana que antecede a Parada, agendada para o Domingo que vem (assunto para um próximo post) – o que chamou mais a atenção desta blogueira foi, de fato, a breve entrevista concedida pelo deputado federal Jairo Paes de Lima (PTC-SP). Como bom representante do partido que traz o cristianismo até no nome, o coronel – que assumiu a vaga de Clodovil Hernandes na Câmara dos Deputados, assim que o apresentador de TV faleceu, no início desse ano – defende a criação de um projeto de lei que proíba explicitamente o casamento homossexual. Para quem não tem acesso à área restrita para assinantes da Folha, colo aqui a entrevista do deputado.

CORONEL LIRA

“Não há como perpetuar a espécie de outro jeito”

Substituto do estilista Clodovil Hernandes, morto em março, na Câmara dos Deputados, o coronel Jairo Paes de Lira (PTC-SP), 56, criou com um colega um projeto contra o casamento gay. “Nos termos constitucionais, nenhuma relação entre pessoas do mesmo sexo pode equiparar-se ao casamento ou à entidade familiar”, diz o texto da proposta. Ele falou à coluna por telefone.

FOLHA – Por que o projeto?

CORONEL JAIRO PAES DE LIRA – É um pedido de declaração mais explícita na lei para reafirmar que o casamento acontece entre um homem e uma mulher. Nossa Constituição não abraça os chamados “casamentos homossexuais”. Além disso, defendo a tradição cristã.

FOLHA – Mesmo que nem todos os brasileiros sejam cristãos?

CORONEL LIRA – De modo geral, as religiões veem o casamento como união entre homem e mulher. Não há modo de perpetuar a espécie de outro jeito. Mas não sou contra parcerias civis, que na prática dão os mesmos direitos.

FOLHA – Clodovil aprovaria a ideia?

CORONEL LIRA – Em vida, ele disse que não aceitava o casamento gay. No final do mandato, apresentou um projeto a favor. Ele era uma figura do jet-set, completamente diferente de mim, mas eu o respeitava. Respeito a escolha de cada um, só não quero isso para mim, meus filhos e as futuras gerações.

Numa consulta rápida ao portal da Câmara, constato que a ironia da coisa vai além do fato de Paes de Lira, um cristão homofóbico, ter assumido a vaga de um homossexual assumido. Na realidade, o projeto de lei de Lira foi apensado (ou seja, ele tramita conjuntamente) ao PL 580/2007, de autoria do próprio Clodovil Hernandes, que pretendia regulamentar as uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo (a íntegra do projeto de Clodovil e sua justificativa podem ser lidas neste pdf).

Vários pontos poderiam ser destacados na ação do deputado Paes de Lira. Eu poderia salientar, por exemplo, o fato mais óbvio: ele não ocupa o cargo por ter sido escolhido por uma parcela significativa da população para defender seus interesses religiosos, embora use esse argumento na justificativa de seu projeto. Paes de Lira está lá porque milhares de eleitores votaram em uma pessoa, um apresentador de televisão famoso e homossexual, sem preocupação com o caráter proporcional de nosso sistema eleitoral, que fortalece os partidos (e aí cabe a crítica a Clodovil Hernandes por escolher logo um partido cristão para lançar-se candidato, e também cabe discutir qual a lógica de um partido cristão acolher um parlamentar que não segue sua ideologia).

Um outro argumento importante para essa discussão é o fato de que a Constituição e o Código Civil não regulam os casamentos religiosos, e sim os casamentos civis. O casamento religioso, embora não seja realizado por um ente público, é reconhecido pelo Estado como sendo uma união, mas não é essa a reivindicação dos LGBT quando falamos em casamento. Quando discutimos o casamento homossexual, estamos falando de um direito civil. Se porventura o casamento entre pessoas do mesmo sexo for aprovado, e espero que seja, isso não dá aos homossexuais o direito de casarem na Igreja, e sim de casarem no civil. Pode ficar tranquilo, senhor deputado. O seu Deus, seja lá qual for, continuará sendo a autoridade máxima dentro de sua Igreja, seja ela qual for, e nenhum padre vai precisar negar seus valores cristãos. O Estado é laico, senhor deputado, sempre é bom lembrar.

Mas o que me choca nesse projeto é sua completa inutilidade. Não estou exagerando: ele é inútil mesmo, comprovadamente desnecessário, e pelo visto o deputado Paes de Lira não tem conhecimento das leis e valores que procura defender. Se lesse um pouquinho de direito de família, o coronel do PTC saberia que o Código Civil já traz, em seu artigo 1.514, uma manifestação clara de heteronormatividade: “O casamento se realiza no momento em que o homem e a mulher manifestam, perante o juiz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal, e o juiz os declara casados.”.

Mesmo ignorando isso, o PL 5.617/2009 continua inútil: em conjunto com as propostas de Clodovil e de Lira, tramita também um outro projeto de lei para regulamentar as uniões estáveis (não casamentos, que fique claro) entre pessoas do mesmo sexo, de autoria de José Genoino (PT-SP) e outros deputados da Frente Parlamentar pela Livre Orientação Sexual (o nome de todos os autores está na abertura da íntegra do projeto). José Paes de Lira não precisaria nem ler a íntegra da proposição. A ementa do PL 4.914/2009 tem um texto bem claro, que poderia muito bem afastar as preocupações do deputado cristão: “Aplica à união estável de pessoas do mesmo sexo os dipositivos do Código Civil referentes a união estável entre homem e mulher, com exceção do artigo que trata sobre a conversão em casamento.