A coroação do Mister Diferença

Bom, em primeiro lugar vamos falar sobre concursos de beleza femininos. Não é preciso ser daquelas feministas antiquadas e anedóticas que povoam o senso comum – com direito a sutiã queimado e tudo – para detestá-los. Não consigo ver, nesses concursos, sequer um ponto favorável ou um aspecto que não seja totalmente nocivo à vida em sociedade. A total objetificação da mulher; a obsessão pela juventude; a banalização da sensualidade; a padronização da estética. Ad infinitum.

Só por esses motivos já deveria ser ruim o suficiente haver tal convenção como um “Mister Gay” ou genéricos. Mas onde uns podem ver apenas uma atividade ingênua, talvez até divertida, eu vejo grandes problemas. Vejamos por que.

Realizar um concurso de beleza masculino e com a restrição de participantes gays pode parecer uma tentativa de analogia da “comunidade gay” com as atividades da “comunidade hetero”. Mas só poderíamos estabelecer a relação de analogia a partir do momento que temos como certo que há diferenças básicas entre os praticantes da hetero e da homossexualidade. Uma analogia, afinal, é a construção de semelhança de propriedades entre sujeitos de natureza diferenciada.

Aceitar o uso da analogia consistiria em reconhecer que a comunidade gay seria análoga à hetero, e natural seria que houvesse nela toda uma nova representação dos elementos existentes na comunidade heterossexual. Assim, o dano causado por um Mister Gay seria análogo ao causado por um Miss Universo, mas sempre com a adição da palavra “gay” ao final de cada frase: a total objetificação do homem (gay); a obsessão pela juventude (gay); a banalização da sensualizade (gay); a padronização da estética (gay). Ad gay infinitum. Dessa forma, os problemas enfrentados dentro do microcosmos homossexual reproduzem os do cosmos heterossexual.

Mas a analogia como método analítico, para mim, não é válida nesse caso. Não é, porque quando tratamos de heteros e gays, estamos lidando com indivíduos iguais, com uma diferença socialmente construída entre eles: o dispositivo da sexualidade. A diferenciação dos sujeitos com base nas práticas sexuais, a naturalização de comportamentos inerentes aos praticantes de determinadas atividades com base no sexo desses sujeitos. Constituir uma comunidade gay, com suas práticas análogas à hetero, é reafirmar essa diferença que, friso, foi construída. É colocar os oprimidos em um lugar seguro para os opressores – distanciado, segregado, categorizado – e manter conceitos totalmente construídos, como a “heterossexualidade”, intocados em seu lugar seguro.

Assim, constituir uma comunidade gay não é um ato de coragem. Antes, de conivência com a diferenciação que dá origem ao preconceito. De busca por reconhecimento como minoria por parte da suposta maioria hetero. “Temos nossa própria comunidade, logo somos como vocês”. Uma frase pobre e contraditória, uma vez que opõe “nós” a “vocês”.

Percebe-se que essa própria comunidade é totalmente restritiva e excludente. Procure a mídia “especializada” para constatar isso. Aquela mídia que gosta de se denominar como “gay”. Vá ler um Mix Brasil. Compre uma Revista Júnior. Faça esse exercício, mas, recomendo, não em ambiente de trabalho, se quiser evitar constrangimentos. Observe como o gay é homem, branco, de classe média, masculinizado, musculoso. Observe como a mulher e o negro não aparecem, a não ser que sejam a Lady Gaga ou um esterotipado negão ativo.

Sim, o “gay” da “comunidade” é totalmente heteronormativizado. Ao invés de análogo ao heterossexual, ou seja, semelhante dentro de suas diferenças, ele persegue o heterossexual. É um igual que reconhece a diferença que lhe foi imposta e, aceitando essa diferença inventada, persegue uma igualdade esquizofrênica que nem ele próprio acredita existir.

Assim, o Mister Gay passa de comemoração inocente para aparato repressivo dentro de um grupo que já é bastante esmagado por um sistema de falsa diferenciação. O homem afeminado que foi rejeitado na escola tem sim a chance de se encontrar em outro lugar: na “comunidade gay”. Mas é claro, para tal, ele tem de abrir mão de sua afetação e perseguir uma masculinidade comportamental e corporal, traduzida em trejeitos e músculos. Ele tem de fazer tudo o que um homem encaixado na norma heterossexual faz, exceto, é claro, praticar sexo com mulheres, afinal ele é dotado do sufixo “gay”. Enfim, ele tem de abrir mão daquilo que ele é, para lutar pelo direito de ser algo que nunca foi. Quem sabe assim ele ganhe algum prêmio. Uma linda faixa que diga: este está enquadrado.

12 Responses to A coroação do Mister Diferença

  1. Nati disse:

    Voltou à ativa!! =)

    • Ricardo Haa disse:

      Senti falta dos posts. Gosto das reflexões sucitadas aqui. Já pensei sobre as questões discutidas no texto, em especial essa imagem do gay que é arquitetada e distribuída pela mídia: branco,másculo etc… Me incomoda essa imagem irreal assim como a questão de que isso está atrelado á um mercado, não é somente uma imagem mas é um produto, e que muitas vezes devemos ter a clareza de perceber que somos concebidos não só como um grupo, mas como um mercado consumidor, e que parte da aceitação do gay provém disso.Inévitável numa sociedade captalista, acredito.

  2. Eros Sester disse:

    Eu me sinto um homossexual marginal. Não me considero como parte da “cultura gay”, apesar da minha sexualidade e, obviamente, também não me identifico com os grandes padrões de cultura que atravessam toda a sociedade em que vivo. Me considero um marginal. Mas, como paradoxalmente na cidade até esses marginais acabam fatalmente se encontrando, ou então estabelecendo vínculos desesperados, ainda não estou só.

    Engraçado, isso aí que você chama de “comunidade gay” eu chamo de “cultura gay” e, talvez no fundo ambas sejam praticamente a mesma coisa (afinal, não há sociedade sem cultura, nem cultura sem sociedade).
    Também estou cada vez mais desconfiado do termo gay, acho que ele por si só já traz em si uma série de valores morais que eu não reconheço como inerentes à sexualidade. Estou já quase convencido que o gay é aquele esteriótipo branco, classe média, discreto, leitor da Veja, bonito, musculoso etc.
    Mas eu seria mais cauteloso ao me referir à comunidade gay como simplesmente um reflexo da heteronormatividade, porque, a gente sabe muito bem, só foi possível que nós alcançássemos muitos dos nossos objetivos por meio da emergência dessa cultura que, fazendo-se notar, passou a disputar com os padrões culturais pré-vigentes. Contudo, muitas vezes, de fato, o preço que nós pagamos é o da adaptação forçada, o da esteriotipação e, portanto, o da apartação cultural, em que os “inadequados” estão fora.
    E, nesse ponto, eu partilho da sua tristeza, Pedro, porque entendo que aquilo que a “comunidade” simplesmente reproduz uma série de valores que, não só deixam de disputar com a moralidade do padrão normativo, mas também passam a se orientar por um mercado em absurda expansão (algo inevitável numa sociedade capitalista, como bem observado por Ricardo). E, nesse ponto, a sua analogia faz todo o sentido.
    Assustador, não?
    Achei realmente fantástico o post, fico feliz que essas coisas sejam discutidas e, por favor, não deixem de postar, vocês são ótimos.
    Abraços!

  3. Rafael disse:

    Seu texto mostra bem como o heterossexismo e as normas de gênero se impõem, criando identidades e modos de ser, tanto entre hetero quanto homossexuais. É lamentável que os homossexuais, em condição de minoria (justamente por essa categoria inventada, a homossexualidade), absorvem, vivem e reproduzem acriticamente essas normas. Isso nos faz questionar se realmente vivemos numa sociedade de maior tolerância ou aceitação, ou se, na verdade, a diversidade está se normalizando, se ‘heterossexualizando’, nas suas palavras. Um bom artigo que fala sobre essa questão é o de Magnavita. Segue a referência, para quem se interessar: MAGNAVITA, A. D. Identidade gay e os preconceitos que cerceiam a tolerância. Filosofia: Ciência & Vida. São Paulo: n. 22, p. 1-5, 2008. Disponível em: http://filosofiacienciaevida.uol.com.br/ESFI/edicoes/22/artigo87205-1.asp.

  4. Ighor disse:

    Concordo com cada palavra.

  5. TAi disse:

    Sinto falta da atualização frequente.
    Gosto dos teus post, e geralmente concordo com o que tu pensa :D

  6. Cris Spiegel disse:

    ‘Mas é claro, para tal, ele tem de abrir mão de sua afetação e perseguir uma masculinidade comportamental e corporal, traduzida em trejeitos e músculos. Ele tem de fazer tudo o que um homem encaixado na norma heterossexual faz, exceto, é claro, praticar sexo com mulheres, afinal ele é dotado do sufixo “gay”.’

    Curioso notar que há um pensamento sobre “o que o homem deve ser”, ou seja, sobre o que se deve entender como natural, como se sujeito do sexo masculino já nascesse sarado, em vez de malhar em 5 dias de toda semana. Daí percebesse uma assimetria entre querer que a homossexualidade seja reconhecida enquanto natural e defini-la com base em desejos por algo culturalmente construído. Sugiro também a leitura do seguinte artigo: http://www.365gay.com/living/why-cant-you-just-butch-up/

    Legal. Até que enfim, atualização. Só sugiro um cuidado no vocabulário, pois afetação significa algo forçado, artificial, embora compreenda que pode ter sido a intenção usar o termo coloquial e, nesse caso, melhor seria usar aspas. Mas gostei, achei interessante e até necessário.

  7. Afonsecaweb disse:

    Nem todo gueto tem de ser necessariamente um espaço físico. Mister Gay é tão gueto quanto Boate Gay. É tudo macaqueamento dos gays para serem aceitos. Se auto-identificam da mesma forma como os gays eram obrigados a fazer durante o nazismo. Desde sempre assumimos essa posição de vítimas da sociedade hétero. Chancelar os padrões héteros de beleza, religião e família é só mais uma estratégia de vítima para seguir existindo. É uma vileza (fantasiada de esperteza) nossa que volta e meia se volta contra nós mesmos.

  8. Pedro disse:

    Qual seria o estereótipo dos gay,que como eu, cultuam a terceira idade, onde o belo se apresenta de uma maneira peculiar na estética do modelo padrão. Mister Old? O Homossexual será sempre um transgressor, por mais paradoxo que possa parecer.

  9. Ana A. disse:

    Interessante, nunca havia notado algumas das coisas mencionadas, mas agora que li essa postagem, estou surpreendida.
    A postagem é polêmica até mesmo para LGBTs, mas os argumentos são excelentes!

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