Retrospectiva de Agosto

1 de setembro de 2009

Agosto foi um mês marcado pela polêmica do “tratamento” de homossexuais. No dia 31 de julho, a psicóloga Rozângela Justino recebeu censura pública do CFP. Em entrevista à Veja, ela se disse amordaçada e chamou os homossexuais de nazistas, o que revoltou a comunidade LGBT e provocou uma carta irada do jornalista e ex-BBB Jean Wyllys, homossexual assumido. Em resposta a isso, a bancada evangélica do Congresso definiu um relator para o projeto de lei que permite essa prática, atualmente proibida pelo CFP. Nos Estados Unidos, esse assunto também foi destaque ao longo do mês, com a negativa de que homossexuais possam ser “curados” e, mais recentemente, com a divulgação de resultados de um tratamento que supostamente “reverteu” a homossexualidade de alguns pacientes.

Opressão disfarçada de cuidado: reprimir a orientação sexual não é saudável!

Opressão disfarçada de cuidado: reprimir a orientação sexual não é saudável!

No campo dos direitos, o principal assunto de agosto certamente foi a união estável entre homossexuais. Duas ações estão no STF defendendo o direito ao reconhecimento dessas uniões. Merece destaque a manifestação da Advocacia Geral da União em relação à ação proposta em julho pela então Procuradora-Geral da República Deborah Duprat. No parecer, a Advocacia Geral da União recomenda que o STF determine o reconhecimento das uniões homoafetivas pelo Estado brasileiro. A via judicial parece a melhor esperança: na Câmara dos Deputados, um projeto que previa uma redação mais inclusiva para a definição de união estável foi modificado para conter somente a “família natural, composta por homem e mulher”.

O mês começou pesado: no dia primeiro de agosto, um centro de convivência para jovens homossexuais em Tel Aviv foi alvo de um ataque em que duas pessoas foram mortas. No Iraque, a situação também não está boa para os gays: um relatório divulgado pela Human Rights Watch no último dia de julho indica que a violência contra LGBTs aumentou no ano de 2009, e pelo menos 82 pessoas foram assassinadas esse ano no país por razões homofóbicas (algumas delas sofrendo tortura). Isso não parece suficiente para que a Inglaterra pare de deportar homossexuais que se refugiam em seu território.

No Iraque, uma fatwa (pronunciamento legal emitido por autoridade religiosa) diz que homossexuais devem ser mortos da "pior forma possível"

No Iraque, uma fatwa (pronunciamento legal-religioso) diz que homossexuais devem ser mortos da "pior forma possível"

Com a morte de Ted Kennedy, o movimento homossexual perdeu um grande aliado na luta pelos direitos dos LGBT no Congresso norte-americano. Em outros países, alguns direitos foram conquistados: na Alemanha, uma lésbica pôde adotar o filho de sua companheira, abrindo espaço para que a proibição de que isso acontecesse fosse considerada inconstitucional. No Uruguai (onde a união civil é permitida desde 2008), por sua vez, o avanço se deu no Parlamento: foram os deputados que aprovaram a adoção por casais homossexuais. E isso que as eleições de lá são em outubro! Não quero ser pessimista, mas no Brasil uma medida assim seria considerada polêmica demais para ser sequer discutida em ano eleitoral…

Já no Chile, o Movimento de Integração e Libertação Homossexual (Movilh) lançou uma campanha para mudar uma lei que só permite sexo com pessoa do mesmo sexo se ambos tiverem mais de 18 anos. Entre os heterossexuais, a idade de consentimento é de 14 anos, enquanto homossexuais podem ser presos por até três anos se tiverem relações sexuais com um menor! Seria cômico se não fosse trágico, e o mês de agosto rendeu outras manchetes nessa linha para os LGBT. O governo da Malásia, por exemplo, incluiu uma sugestão curiosa entre as medidas de precaução contra a gripe A: evitar sexo homossexual, pois essa prática tornaria o corpo mais suscetível ao vírus H1N1. Nos EUA, um religioso defende que a aceitação de pastores gays não celibatários pela Igreja Luterana causou um tornado.

Brüno: humor busca repercussão, não consenso

Brüno: humor busca repercussão, não consenso

Falando em piada, não podemos negar: o filme Brüno, de Sacha Baron Cohen, é o destaque absoluto no que diz respeito à cultura LGBT. O Homomento fez duas críticas do filme: Rodrigo Maciel discordou dos excessos cometidos pelo ator e diretor do filme, enquanto Carolina Maia acredita que o humor escrachado de Cohen denuncia preconceitos. Essa discordância ilustra bem as ideias de Pedro Cassel, que defendeu ao longo do mês (num texto em três partes: 1, 2 e 3, com um post especial do leitor Paulo Simas) que a “cultura gay monolítica” está em crise: LGBTs não são uma população coesa e homogênea, e cada um dos indivíduos que a compõem têm suas próprias opiniões, vivências e demandas particulares.


A Conferência Anti-Heterossexista de 2009

21 de agosto de 2009

Mais um capítulo da novela da terapia para homossexuais nos EUA.

Desgostosa com a decisão da APA, a NARTH (National Association for Research & Therapy of Homossexuality / Associação Nacional pela Pesquisa & Terapia da Homossexualidade) se prontificou a organizar uma convenção nacional para discutir seus métodos e treinar novos profissionais. Ela ocorrerá dias 20, 21 e 22 de novembro desse ano, na Florida, com a (assustadora) temática “prevenindo e tratando a confusão de identidade sexual na vida de crianças, jovens e adultos”.

NARTH: articulados contra a diversidade

NARTH: articulados contra a diversidade e o respeito

A Soul Force, organização que tem como objetivo específico lutar contra a repressão religiosa a LGBTs, foi rápida em dar uma resposta. A Conferência Anti-Heterossexista de 2009, concebida e divulgada por eles, ocorrerá propositalmente nos mesmos dias: 20, 21 e 22 de novembro. Em seu site de divulgação, explicam um pouco desse conceito de “anti-heterossexismo”.

Heterossexismo é a premissa de que todos são heterossexuais e que a atração pelo sexo oposto é preferível e superior à pelo mesmo sexo. O heterossexismo está presente em quase todas as instituições sociais, religiosas, culturais e econômicas da nossa sociedade e leva à discriminação e às danosas tentativas de alguns profissionais da saúde e grupos religiosos a reprimir a orientação sexual dos que estão sob seus cuidados.

Anti-heterossexismo envolve o reconhecimento e questionamento do poder e dos privilégios que a sociedade dá aos heterossexuais por conta de sua orientação sexual. Envolve respeitar e estimular a inclusão e diversidade de pessoas de todas as orientações sexuais e identidades de gênero.

Acredito, pessoalmente, que heteronormatividade seja um termo bem mais conciso e adequado que heterossexismo. Muito provavelmente os religiosos utilizarão esse discurso da Soul Force de maneira falaciosa, como se a convenção tivesse como meta eliminar a heterossexualidade do mundo. Mas convenhamos que falaciosidade, absolutamente, não é uma novidade na luta de homofóbicos contra militantes LGBTs.


Insistindo no erro

20 de agosto de 2009

A decisão da American Pshychological Association de banir tratamentos de cura para LGBTs já está sendo contestada, como era de se esperar. Uma pesquisa desenvolvida durante seis anos tendo como objeto de estudo 61 homens e mulheres homossexuais em tratamento “comprova” que a terapia direcionada à reorientação sexual é eficiente. Confira os resultados no infográfico abaixo, gerado pelo Homomento com as frases originais do trabalho, traduzidas para o português.

Tabela

A alegação é que a primeira e a segunda categoria da tabela, aliadas, formam a parcela de gays totalmente curados. Assim, a grande descoberta divulgada foi que 53% dos homossexuais que tentam se curar obtém sucesso. Waymon Hudson, do Bilerico Project, não precisa pensar muito para detectar uma falha: então castrar homens gays e fazer deles celibatários é curá-los? Essa é a definição para “perder a homossexualidade”? – Não manter relações sexuais com ninguém e ter atrações por homens “reduzidas”?. Notem, também, que os que se mantiveram gays apenas não teriam realizado o tratamento até o fim, sugerindo falha por parte dos pacientes e não do procedimento.

A matéria de Hudson sobre o caso é bem completa, mostrando-nos ainda críticas realizadas pela própria Pshychological Association e até mesmo por um grande portal de notícias cristãs. Pudera; há erros gritantes como a omissão, na porcentagem final, de 37 pessoas que desistiram “por razões diversas” ao longo dos seis anos. Assim, se 61 homossexuais formam a pizza visualizada acima, deveriam ser 96. Quase 40% dos objetos foram totalmente abstraídos da conclusão.

A pesquisa é, na realidade, uma versão atualizada do livro Ex-Gays?, dos mesmos autores, publicada em 2007

A pesquisa é, na realidade, uma versão atualizada do livro Ex-Gays?, dos mesmos autores, publicada em 2007

O resumo do trabalho, que foi apresentado numa convenção em Toronto no último 9 de Agosto, tem de fato conteúdo bastante duvidoso. Os pesquisadores Stanton Jones (Wheaton College) e Mark Yarhouse (Regent University) discorrem sobre como os estudos na área do tratamento de homossexuais foram postas de lado por conta de um preconceito que os associa a experimentos passados. Contam que a terapia observada era realizada por membros da Exodus International, grande instituição católica unida pela conversão de gays (sobre a qual já falamos anteriormente, no relato de um homossexual que se submeteu aos procedimentos deles). Finalizam, é claro, colocando que mesmo que sua hipótese inicial fosse que a orientação sexual não pode ser alterada e que seu tratamento traz malefícios, só puderam chegar a conclusões totalmente contrárias.

Depois da fantástica reflexão da Carol sobre a idéia de que se pode reorientar a sexualidade, tudo o que me resta a comentar é a disposição e o tempo que essa gente tem para elaborar maneiras de provar que a existência de homossexuais é inaceitável. Se religiosos e homofóbicos de plantão revertessem tempo que gastam lutando contra LGBTs em jogos de peteca, por exemplo, com certeza seriam sujeitos mais alegres e bem menos desgostosos com a vida alheia. Fica a singela sugestão.


Destaque da semana: o fim dos (des)tratamentos

9 de agosto de 2009

Nessa quarta-feira, 5, nos Estados Unidos a American Pshychological Association determinou que os profissionais da área não devem dizer aos seus clientes homossexuais que eles podem se tornar heteros através de terapia. Um dos motivos para que a decisão fosse tomada foram estatísticas apontando que frequentemente esses procedimentos conduzem a pensamentos depressivos e suicidas.

No embalo do clima anti-terapia, foi divulgado essa semana o comovente relato de Patrick McAlvey, um rapaz que, ao perceber os sinais de sua orientação sexual, sentiu-se confuso e buscou a ajuda de um psicólogo.

No vídeo, McAlvey descreve os métodos nada convencionais utilizados pelo contratado para livrá-lo desse mal: abraçá-lo longamente para “suprir sua necessidade de amor masculino”, levá-lo à sua casa para mostrar filmes com atores nus e fazer perguntas a respeito do tamanho de seu pênis (alguém está pensando na mesma coisa que eu?). Ainda conta que, quando revelou ao psicólogo que a terapia não estava surtindo efeito, este deu-lhe uma palestra sobre como a vida dos gays se resume a usar drogas, beber excessivamente, comportar-se promiscuamente e contrair DSTs.

O mais preocupante é pensar que Mike Jones não é um salafrário qualquer, como aparenta por sua maneira de proceder: ele é o diretor da Corduroy Stone, associação filiada à Exodus International, grande organização que tem como slogan Libertação da homossexualidade através do poder de Jesus Cristo.

Patrick diz que a experiência atrasou sua vida, causando um sofrimento irreparável.

Eu era incapaz de me aproximar ou de confiar em qualquer pessoa, com medo que ela descobrisse o meu segredo e me odiasse por isso. (…) Se eu tivesse acesso a uma representação justa de gays, se alguém me dissesse que eles também podem ser felizes, ter relacionamentos saudáveis, construir famílias e tudo o que eu sempre quis fazer, muito sofrimento teria sido evitado na minha vida. (…) Eu queria dizer a todos que tentam fazer esse tratamento que o momento mais feliz da minha vida foi quando eu me aceitei de verdade (…).

Se por um lado é animador assistir a um vídeo assim e pensar que, ao menos na teoria, tais práticas foram abolidas nos EUA, sabemos que infelizmente, mesmo com os devidos impedimentos previstos no papel, o mesmo definitivamente não se aplica em solo tupiniquim.


O preconceito e a cura

6 de agosto de 2009

Vítima frequente de uma dor de cabeça insuportável, o poeta João Cabral de Melo Neto acostumou-se à aspirina. Mais do que acostumar-se, criou com ela uma relação de incrível proximidade, a ponto de dedicar um poema ao famoso comprimido. Milhares de pílulas depois, uma cirurgia para curar uma úlcera no duodeno acabou também com a cefaleia, libertando o artista de seu vício.

Um leitor menos paciente perguntará: o que isso, afinal, tem a ver com homossexualidade? Ou mesmo com cultura LGBT? Antes que um clique nervoso feche essa janela de seu navegador, mantenho o mistério: pode ter, sim, muita coisa a ver.

Temendo represálias, a psicóloga Rozângela Justino escondeu seu rosto

Temendo represálias, a psicóloga Rozângela Justino escondeu seu rosto

A última aparição misteriosa no Homomento foi de Rozângela Justino, psicóloga presbiteriana famosa pelo tratamento supostamente capaz de “curar” homossexuais. Essa prática contraria a resolução 01/1999 do Conselho Federal de Psicologia (CFP), que orienta a conduta profissional do psicólogo em relação à orientação sexual.

Segundo essa resolução, a homossexualidade não deve ser considerada “doença, nem distúrbio, nem perversão”, não cabendo tratamento para saná-la. O documento ainda incentiva o profissional a contribuir na luta contra o preconceito, vetando a participação de psicólogos em “eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades”, bem como “qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas”.

Repreendida com censura pública pelo Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro (CRP-RJ) em 2007, Justino apelou para o CFP por discordar da resolução 01/1999. Quem esperava uma punição mais severa, como a cassação do registro da psicóloga, acabou frustrado. No julgamento, ocorrido na sexta-feira, dia 31 de julho, o órgão manteve a censura pública. “Quando é o profissional que recorre, este Tribunal não pode agravar a pena e sim abrandar o que não foi aceito pelo Conselho ou manter a decisão do órgão regional”, disse o presidente do CFP, em matéria do site A Capa.

Quando se fala em sexualidade – homo, hétero, bi, trans –, existe uma distinção que se deve fazer entre o sentimento e a prática. Uma homossexual enrustida pode viver anos no armário, resistindo à tentação do contato homoerótico, e isso não mudará o desejo que ela sente por outras mulheres. Um heterossexual bem-resolvido pode dar-se ao luxo de, eventualmente, experimentar como o seu corpo se comporta numa relação sexual com outro homem, sem que isso provoque alteração em sua identidade sexual ou em seu desejo por mulheres. É necessário ver a diferença entre orientação sexual e experiências sexuais.

Controlar a dor não muda a causa do problema!

Controlar a dor não muda a causa do problema!

É por isso que defendemos: não é possível “reconduzir” a sexualidade de alguém ou “resgatar” uma heterossexualidade perdida. A visão da psicóloga Justino pressupõe que a orientação sexual é algo adquirido, portanto passível de ser mudado. Não é.

O raciocínio de que homossexuais em sofrimento devem ser tratados, portanto, é falacioso. Como o próprio CFP assume, não há doença, não há o que tratar. Assim, a terapia oferecida por Justino precisa, sim, ser questionada, mesmo que a intenção – ajudar pessoas “em estado de sofrimento, acometidas pela orientação sexual egodistônica [caso em que a homossexualidade é sinônimo de sofrimento para o indivíduo]” – pareça boa.

Voltando ao poeta: tentar “readequar” a orientação sexual de uma pessoa porque sua homossexualidade é fonte de sofrimento é a mesma coisa que achar que a aspirina vai curar uma dor crônica. O que causa tristeza não é o desejo por alguém do mesmo sexo. É ver esse desejo (e os sentimentos dele decorrentes) constantemente negado, visto como fonte de doenças, motivo para reprovação da família e até assassinatos.

Fobia, na Wikipédia: “em linguagem comum, é o temor ou aversão exagerada ante situações, objetos, animais ou lugares”. A psicopatologia clínica sustenta que essas, sim, são passíveis de tratamento. A censura pública emitida pelo CFP pode parecer uma pena branda, mas já é um passo na busca da cura de uma fobia específica, aquela que volta sua aversão exagerada à diversidade sexual.

Quanto ao temor manifesto pela psicóloga – o de sofrer represálias na mão da “ditadura gay”, que “amordaça” opiniões divergentes da sua –, ainda há muito a ser dito. Na próxima semana, o Homomento vai publicar um outro artigo sobre homofobia, dessa vez abordando o PLC 122/2006 e o argumento da “liberdade de expressão”.