Nepal, a Meca LGBT da Ásia

22 de janeiro de 2010

Na última semana, saíram várias notas dizendo que o Monte Everest era a próxima conquista dos homossexuais: os direitos gays terão ainda no primeiro semestre um grande avanço no Nepal. Bom, quem diria que um pequeno país, exprimido entre as gigantes Índia e China, se tornaria um destaque como destino gay a nível mundial? Me perguntando como e porque isso aconteceu, acabei encontrando esse texto do Michael Jones (ótimo blogueiro do Change.Org, velho de guerra das nossas traduções de sexta), ótimo para dar uma noção a quem não sabe do que se trata. Vale lembrar também que questionar é sempre mais do que bom – e que o interesse econômico, especificamente nesse caso, pode ser bem maior do que uma aceitação real e presente na cultura do país.

Kathmandu

Nepal, a Meca LGBT da Ásia
por Michael Jones

Talvez alguém no ministério de turismo do Nepal queira fazer um adesivo: “De Guerra Civil a Casamento Civil”. O país, que há menos de cinco anos atrás estava sofrendo os efeitos de uma brutal guerra civil entre o governo e os Maoistas rebeldes, vai ter, em cinco meses, a única constituição da Ásia que garante direitos iguais para as minorias sexuais.

Alguns anos atrás, a Corte Suprema do Nepal deicidiu que o país deveria pesquisar sobre as leis que concediam direitos iguais a LGBTs ao redor do mundo e encontrar uma maneira de incorporar tais princípios em sua própria constituição. O país olhou para a Espanha, a Holanda, o Canadá, a Noruega e vários outros países onde LGBTs têm toda uma gama de direitos igualitários (notem que os Estados Unidos estão fora dessa lista).

O resultado final da pesquisa virá à tona em maio de 2010, quando o Nepal adotar sua nova constituição. Casamento entre pessoas do mesmo sexo? Sim, isso estará lá. Cuidados para que linguagem ofensiva não seja empregada para se referir a LGBTs? Sim, estará também. E que tal garantir direitos identitários favoráveis a transexuais e transgêneros? Bom, isso também será previsto. Isso significa que a constituição do Nepal, uma vez que promulgada, pode se tornar o documento mais progressivo na face da terra.

O que, voltando ao tópico inicial do turismo, levou alguns a pensarem que o Nepal acaba de se tornar a capital LGBT da Ásia, senão do mundo. No momento que a constituição se tornar oficial, em Maio, uma companhia de turismo vai começar um esforço pra tornar o Monte Everest uma “Montanha Rosa”, um destino comum para casais gays e lésbicos ao redor do mundo.

Sunil Pant, um dos líderes ativistas LGBTs de Nepal e o único membro de parlamento abertamente homossexual em todo o continente asiático, irá liderar essa companhia de turismo. Sua astuta conclusão é que a economia do Nepal vai ganhar muito com o casamento gay.

“A maioria dos países asiáticos não recebem bem os visitantes gays, então nós teremos muitos benefícios para a economia do Nepal, que está frágil depois de anos de guerra”, disse Pant.

Faça amor, não guerra. Ou no caso do Nepal, igualdade, e não guerra. Palavras diferentes; mesmos princípios.


História da GLAAD

15 de janeiro de 2010

Recentemente a Aliança Gay & Lésbica Contra a Difamação (em inglês, formando a sigla GLAAD) anunciou os indicados para seu prêmio anual. Muito se tem comentado sobre os escolhidos – Lady GaGa, os seriados Glee e Grey’s Anatomy, a revista People e o filme Prayers for Bobby, para mencionar alguns aleatórios – mas será que todos sabem exatamente o que é a GLAAD e o que é feito por eles? A tradução dessa sexta é um texto emitido pela organização contando um pouco da sua história e do que é feito por lá. Por mais que tenha ares de propaganda, bem release oficial mesmo, vale a pena a leitura.

História da GLAAD
Pense em algum tempo atrás, quando as palavras “gay” e “lésbica” eram tabus na mídia – um tempo em que a manchete do seu jornal estampava, na primeira página, histórias homofóbicas, um tempo em que a indústria do entretenimento não pensava duas vezes antes de produzir imagens estereotipadas e preconceituosas de gays e lésbicas. Não faz tanto tempo quanto você pode pensar.

Menos de 25 anos atrás, antes da formação da Aliança Gay & Lésbica Contra a Difamação (GLAAD), representações de lésbicas e homens gays tendiam a cair em uma das duas categorias: difamatório ou inexistente. Desde sua criação, o impacto da GLAAD na visibilidade da nossa comunidade tem sido de grande alcance. Não só os funcionários e voluntários do GLAAD transformaram a maneira como gays e lésbicas são retratados na televisão e nas notícias, como tornamo-nos também uma importante fonte de recursos e informações para o entretenimento e tomadores de decisão da mídia. A Entertainment Weekly nomeou a GLAAD como uma das entidades mais poderosas de Hollywood, e o Los Angeles Times descreveu-a como “possivelmente a mais bem-sucedida organização de lobby da mídia para a inclusão”.

Formado em Nova York em 1985 para protestar contra a grosseira, difamatória e sensacionalista cobertura do New York Post da AIDS, o trabalho da GLAAD rapidamente se espalhou por Los Angeles, onde começou a educar a indústria do entretenimento de Hollywood sobre a importância das representações mais precisas e realistas na tela. Conforme o trabalho da GLAAD cresceu, a organização ganhou espaço nacional, com escritórios em Nova York, Los Angeles e San Francisco. Para servir os interesses regionais e locais de mídia, o Programa de Mídia Regional da GLAAD cresceu para ajudar comunidades locais em todo o país mobilizando campanhas, treinando a mídia e outras ações.

Tendo cultivado relações com profissionais de mídia através de duas décadas, lista de realizações da GLAAD denota uma contribuição significativa e contínua, à igualdade LGBT. Não foi até 1987, após uma reunião com o GLAAD, por exemplo, que o The New York Times mudou sua política editorial para usar a palavra “gay”. Vinte e um anos depois, o projeto Anunciando a Igualdade resultou em mais de 1.000 jornais em todo o país – incluindo o The New York Times – optando por incluir anúncios de gays e lésbicas junto a outros anúncios de casamento.

A GLAAD não atinge apenas os bastidores da mídia, mas também tem impactado milhões através de jornais, revistas, cinema, televisão e campanhas de visibilidade. Nós chamamos a atenção da mídia para: o ódio motivado assassinato de Matthew Shepard, Arthur “JR” Warren, Brandon Teena, Fred Martins, Gwen Araujo e outros; a defesa anti-gay de “Dr. Laura” Schlessinger, letras de Eminem ódio; os heróis gays e vítimas de 9-11; os anúncios de “ex-gays”, e mais recentemente, as tentativas de oficiais da Igreja católica de envolver padres gays inocentes em histórias de abuso sexual.

Por causa do trabalho da GLAAD, histórias e temas ligados a gays e lésbicas são tratados nas publicações nacionais e locais, nos filmes e na televisão. Representações negativas e indelicadas da comunidade têm diminuído, enquanto as lésbicas e homens gays têm sido cada vez mais incorporados em quase todo tipo de plataforma de mídia – das novelas às histórias em quadrinhos. Mas há muito trabalho ainda a fazer. Representações de transgêneros e bissexuais, de todo o espectro da diversidade da nossa comunidade, e representações precisas de nossos relacionamentos são apenas alguns domínios onde GLAAD continua a concentrar os recursos e atenção.

Atenta às constantes mudanças da mídia na atualidade, a GLAAD continua fornecendo aos jornalistas e profissionais de mídia informações oportunas, abrangentes e concisas, ampliando a representação da nossa comunidade de notícia em notícia, através de uma eficiente e poderosa combinação entre advocacia, educação e visibilidade.


Gay em Uganda, e com a sensação de estar sendo caçado

8 de janeiro de 2010

Para essa semana traduzimos um texto publicado no New York Times sobre toda a história que está acontecendo em Uganda – sob a perspectiva dos homossexuais, no entanto. Por mais que seja difícil, é interessante ler tendo em mente: isso está acontecendo em pleno 2010.

Gay em Uganda, e com a sensação de estar sendo caçado

KAMPALA, Uganda – Isolamento, insultos, ameaças e violência: é com isso que a comunidade gay de Uganda, a maioria não assumida, tem lidado há anos.

Mas agora que pólíticos de Uganda estão ameaçando aprovar uma nova medida anti-homossexualidade que irá sentenciar alguns homossexuais (reincidentes, portadores do vírus HIV e outros) à prisão perpétua ou mesmo à morte, muitos gays e lésbicas dizem estar se sentindo caçados.

“Nós andamos pelas ruas sabendo que a qualquer momento você pode ser reconhecido e que então as pessoas podem querer fazer justiça com as próprias mãos”, disse Stosh Mugisha, uma mulher que está passando pela transição para se tornar homem. “Você se sente constrangido por gente tocando em você. As pessoas nos provocam. Mas eu tento ficar frio. Fico na minha. É terrível”.

Val Kalende, outra entre os poucos assumidos ativistas pelos direitos dos homossexuais nesse país de 32 milhões de habitantes, afirmou que ser gay em Uganda é “bastante problemático”.

“Se você está na escola e seus pais descobrem [que você é homossexual], eles param de pagar sua mensalidade”, ela disse. “Sua família irá evitar você. Eles costumavam me perguntar, ‘Você não quer ter filhos? Você não quer um marido?’”

Os sentimentos anti-homossexualidade são uma coisa, e dificilmente podem ser atribuídos somente a Uganda. O que parece diferente aqui é o nível dos discursos oficiais, mantidos pelo governo, de ódio contra homossexuais.

“Odeio gays do fundo do meu coração”, disse Kassiano E. Wadri, membro do Parlamento e líder da bancada de oposição. “Quando vejo um gay, penso que aquela pessoa precisa de psicoterapia. É preciso refreá-los”.

Não surpreende, portanto, que muitos homossexuais aqui tenham insistido em conceder entrevistas anonimamente, incluindo um vendedor de carros que será identificado como Bob. Ele perdeu seu emprego em um hotel há alguns anos, depois que o Red Pepper, um jornal ugandense, publicou uma lista de nomes de homossexuais, incluindo o seu.

“Quando o seu chefe descobre que você é gay, você começa a ser perseguido”, ele disse. Depois, você começa a ser censurado na frente dos outros. Então, é demitido. É difícil encontrar um namorado,” ele conta, “porque você não sabe em quem pode confiar”. Ele respira fundo e baixa a cabeça, olhando para as mãos. “É muito complicado ser gay em Uganda”, ele diz.

Nikki Mawanda tem 27 anos e nasceu mulher, mas vive como homem – ele se descreve como “transhomem”. Ele contou que quando criança, olhava diretamente para o sol por longos períodos, na esperança de que o trauma pudesse mudar seu sexo. Agora, ele prende suas mamas com bandagens apertadas, usa um boné de baseball com a aba virada para trás e pequenos dreadlocks saindo para fora, e namora com mulheres.

“Esse ano, coisas terríveis aconteceram comigo”, conta. Um policial enfiou um dedo em seu olho, ele disse, alguém jogou cerveja em sua cara em um bar, e um segurança de um minimercado lhe deu uma coronhada enquanto ele tentava fazer compras.

Mas há um oásis longe disso tudo, e sua localização não é nenhum segredo guardado a sete chaves.

Toda noite de domingo no centro de Kampala, capital de Uganda, dezenas de gays, lésbicas e transgêneros se encontram em em uma boate quente, que fica na rua de uma escola, atrás de algumas palmeiras, atrás de cerveja gelada e lip-syncing ruim.

Nesse último domingo, os gays estavam jogando sinuca, se esfregando na pista de dança, e balançando a cabeça no ritmo de um show deprimente de karaokê que ocupava o palco. Duas lésbicas se acomodavam de mãos dadas em um banco, dividindo uma cerveja Nile Special. Havia provavelmente mais de 100 homossexuais no clube e o mesmo número de não-gays.

Por algum motivo, a polícia de Uganda deixou esse lugar em paz, ainda que muitos expressem a preocupação de que o clube possa estar com os dias contados.

Um homem gay europeu, que pediu para não ser identificado, ergueu seu queixo apontando para o cenário mais amplo.

“Veja, é disso que estou falando”, ele diz, “Veja toda essa gente aqui, gays e héteros. Não há nenhum problema”. Ele abraça um amigo alto.

“Não é a homossexualidade que vem do exterior”, diz o europeu. “É a homofobia.”


Top 10 Momentos Gays da Década

18 de dezembro de 2009

Enquanto o Homomento tornou-se praticamente um blog fantasma, por conta do término do semestre – e do merecido descanso destes blogueiros – pipocam por aí listas de fim de ano. Top discos, filmes, séries; top qualquer coisa. Como fã dessas listinhas, não pude deixar de me entusiasmar quando li esse texto do Michael Jones, do Change.Org, que traduzi pra hoje.

Com o ar otimista desse artigo, deixo os votos de feliz ano novo para todos os leitores e amigos que frequentam, comentam e divulgam o Homomento – e a promessa de que em breve retomaremos as atividades com o devido gás.

Top 10 Momentos Gays da Década
por Michael Jones

Os historiadores não podem lançar para esta última década um olhar descontraído. Houve um genocídio no Sudão, uma guerra contra o terrorismo, uma crise econômica, o seriado “Jon and Kate Plus 8”. Nem mesmo Tiger Woods pôde sobreviver a esta década sem ver seu navio afundar. Apesar dos desafios e tribulações dos últimos dez anos, essa década foi repleta de doces conquistas quando falamos de direitos LGBTs. Esse foi o retorno para o ativismo incansável de todos nós, que fizemos bom proveito dos acontecimentos sociais para desenvolver assuntos LGBTs, mesmo com as dificuldades em termos políticos.

Dez anos atrás, o casamento igualitário só existia na imaginação das pessoas e em muitos estados do país (e do mundo), LGBTs poderiam ser presos simplesmente por ter relações consensuais nos seus próprios quartos. Caminhamos muito em dez anos e ainda temos muito a caminhar. Mas, por enquanto, façamos algumas reflexões sobre as dez melhores vitórias LGBTs, surpresas e momentos de glória desses tempos recentes. Concorda? Discorda? Tem outros a adicionar? Deixe-nos saber na caixa de comentários.

10. Bispos quebrando tetos de vidro
Primeiro houve a eleição para o primeiro bispo abertamente gay, Eugene Robinson, em 2003, que chocou tanto a Igreja Episcopal norte-americana que a mesma decidiu não permitir mais tais ordenações pelos próximos anos. Membros conservadores da Igreja responderam a ordenação do bispo Robinson com descaso, e algumas dioceses individuais romperam com a Igreja norte-americana. Mas o bispo Robinson segue até hoje como um dos mais queridos líderes religiosos LGBTs. Em breve ele terá novos colegas, como a Rev. Mary Glasspool, que recém foi eleita bispo auxiliar na diocese da Igreja Episcopal de Los Angeles. Ah, e nós mencionamos que a Igreja Luterana da Suécia elegeu a primeira bispa luterana recentemente?

9. De Portia a Adam
A década que começou com poucas celebridades assumidas (Ellen, Rupert… Bom, apenas Ellen e Rupert) tornou-se o tempo em que celebridades fora do armário causaram grande impacto. Portia de Rossi. Adam Lambert. Neil Patrick Harris. Wanda Sykes. Clay Aiken. Rachel Maddow. Chris Colfer. Jane Lynch. Lance Bass. Mika. Suze Orman. E a lista prossegue. E quando estamos falando do número de seriados e filmes que abordam temáticas LGBTs, essa foi uma das melhores décadas. Brokeback Mountain se tornou popular a ponto de “Brokeback” virar expressão corrente, Milk ganhou vários Oscars, isso para citar apenas alguns. E quem poderia esquecer dos personagens LGBTs em Six Feet Under, Glee, Ugly Betty, Queer as Folk, The L Word, Modern Family e outros? Se os 90 foram definidos pela declaração de Ellen, “I’m Gay”, em seu programa, essa década no entretenimento foi definida pela quantidade de portas que programas como o da Ellen abriram.

8. Adeus à proibição do trânsito de soropositivos
Embora ainda seja válida até 31 de Dezembro de 2009, a administração de Obama realizou a promessa de banir a proibição de tráfego de soropositivos. A proibição, que opera desde 1987, privava os soropositivos de viagens pelo país. Por muitos anos, isso significou que soropositivos eram separados de seus amigos e familiares, além de significar que muitas das conferências internacionais sobre HIV/AIDS não podiam ser realizadas nos Estados Unidos. Não obstante, nesse último Dia Internacional da Luta Contra a AIDS a Secretária de Estado Hilary Clinton anunciou que em breve os Estados Unidos vão sediar a International AIDS Conference, marcada para 2012. Boas notícias, e uma importante vitória para organizações como a Immigration Equality, que trabalharam incansavelmente contra a medida proibitiva.

7. A luta para expandir as leis contra crimes de ódio
Judy e Denis Shepard encerraram a década de 1990 com a notícia que seu filho, Matthew Shepard, havia sido assassinado por causa de sua orientação sexual. Passados dez anos, depois de muito trabalho no Congresso, os Shepard encontravam-se na Casa Branca no dia em que o presidente Obama assinava a legislação expandindo a lei federal de crimes de ódio para incluir a proteção à orientação sexual, identidade de gênero, gênero e deficiência. Pode-se chamar isso de mudança histórica: uma mudança de corações e mentes. Com o registro de 1700 crimes de ódio cometidos no ano passado por motivação na orientação sexual ou identidade de gênero da vítima, essa lei não poderia ter chegado em melhor hora.

6. A emergência da Blogosfera LGBT
Onde estaríamos sem o Pam’s House Blend? Ou o Towerload? Joe.My.God. AmericaBLOG. The Bilerico Project. Open Left. Queers United. Sim, a nova mídia LGBT ganhou formato recentemente, em parte pela necessidade de cobrir os diversos assuntos relacionados a LGBT. Mas também em parte por causa da sua habilidade para criar uma boa base, se organizar rapidamente e incitar a ação. A National Equality March desse ano é um exemplo, tal como outras manifestações ativistas. E não esqueçamos que foram os bloggers LGBT que divulgaram os escândalos que aconteciam nos bastidores do cenário político conservador americano (como com republicano Mark Foley e com o senador Larry Craig).

5. Descriminalize!
Os direitos gays internacionais ganharam base nos últimos dez anos, com países como Espanha, África do Sul e Canadá legalizando o casamento homossexual e com países como a Índia se esforçando em direção da descriminalização da sodomia. Vários países também assinaram a um chamado da ONU para a comunidade internacional descriminalizar a homossexualidade, chamado este que foi uma das maiores manifestações de apoio da ONU aos direitos LGBT.

4. Lutando contra a homofobia por onde ela começa
A explosão de alianças Gay-Straight (gay-hétero) em instituições de ensino de todo o país foram uma das maiores conquistas dos direitos LGBTs, lutando contra a homofobia por onde ela começa – na juventude, dentro das salas de aula, parques ou nos vestiários. Hoje a GLSEN (Gay, Straight, Lesbian Education Network) estima que haja por volta de 34 mil alianças Gay-Straight por todo o país, trabalhando para melhorar o ambiente escolar para os estudantes LGBTs. Ah, isso sem mencionar as dezenas de programas de estudos Queer que surgiram nas universidades por todo o país, fazendo dessa uma ótima década na frente educacional.

3. Johanna, nós te amamos
Ela pode ter um dos nomes de mais difícil pronúncia no mundo inteiro, mas Johanna Sigurdardottir é um nome para os livros de história. Depois que o governo islandês basicamente colapsou, Sigurdardottir se tornou Primeira Ministra do país – e, assim, o primeiro líder abertamente LGBT da nossa era. Pra todos aqueles que ainda se perguntam se um LGBT pode ser presidente, olhe para a Islândia. Sigurdardottir foi também eleita uma das 100 mulheres mais poderosas no mundo.

2. Lawrence vs. Texas
Quem diria que o Supremo que nos deu George W. Bush nos daria também o fim das leis norteamericanas contra a sodomia. A Corte definiu em 2003 que esse tipo de lei era totalmente antiquada, além de incongruente com os direitos concedidos a todos os americanos. Como os juízes expressaram, “a íntima e consensual relação entre adultos faz parte da liberdade protegida pelos componentes da Quarentésima Emenda”. Em outras palavras? A Constituição dos Estados Unidos não quer que o governo regule o que acontece entre quatro paredes – ou mesmo na mesa da cozinha. Uma grande decisão, com implicações nacionais.

1. Case-se comigo
Não importa o que você pensa sobre casamentos, não há dúvidas que essa década foi a década do casamento gay. Primeiro Massachusetts, depois Connecticut, depois Iowa, Vermont e New Hampshire. California e Maine contam, também, mesmo que iniciativas antigay os tenham removido da lista temporariamente. No fim de 2009, poderemos adicionar New Jersey, e no começo de 2010, parece que teremos também o distrito da Columbia. Isso fecha 10% do país inteiro. É claro que uma estratégia de “um estado por vez” para o casamento igualitário ainda mantém um certo número de benefícios federais longe dos casais LGBT. Mas vencer em cada um desses lugares significou uma grande vitória em âmbito geral, levando a discussão do casamento entre pessoas do mesmo sexo para toda a nação. A maioria de nós termina esse ano pensando que quando o assunto é casamento igualitário, a questão é “quando”, e não “se”. Eu não sei quantos de nós falaríamos dessa maneira há dez anos atrás.


Malcom X era bissexual. Aceitem isso.

20 de novembro de 2009

Dia 20 de Novembro é o Dia da Consciência Negra no Brasil – data importante em um país com histórico escravista e racista como o nosso. Aproveitando a oportunidade, buscamos, para a tradução da semana, um texto que abordasse tanto a questão negra quanto a LGBT: encontramos um interessante protesto de Peter Tatchell, do Guardian, a respeito do Mês da História Negra e do Mês da História LGBT. Você pode ler a nossa tradução ou o original em inglês.

Malcom X era bissexual. Aceitem isso.
por Peter Tatchell

Outubro é Mês da História Negra na Grã-Bretanha – uma maravilhosa celebração da enorme, importante e valiosa contribuição que os negros têm feito à humanidade e à cultura popular.

Também vale a pena comemorar que muitos dos principais ícones negros foram lésbicas, gays, bissexuais ou transgêneros (LGBT), mais notadamente o herói da libertação negra nos EUA Malcolm X. Outros LGBTs negros a serem destacados incluem a cantora de jazz Billie Holiday, o escritor e ativista de direitos civis James Baldwin , o cantor e compositor soul Luther Vandross, a cantora de blues Bessie Smith, o poeta e contista Langston Hughes, o cantor Johnny Mathis, a romancista Alice Walker, o ativista dos direitos civis e organizador da Marcha de 1963 em Washington Bayard Rustin, a cantora de blues Ma Rainey, o dançarino e coreógrafo Alvin Ailey, a atriz, cantora e dançarina Josephine Baker, o medalhista olímpico Greg Louganis, o cantor e compositor Little Richard, a ativista política e filósofa Angela Davis, a cantora e compositora Tracy Chapman e a cantora e drag queenRuPaul.

Poucos destes proeminentes ícones negros LGBT estão listados no site mais completo sobre o Mês da História Negra no Reino Unido, que hospeda as biografias de notáveis homens e mulheres negros. Na seção sobre personalidades, somente Angela Davis é mencionada e seu lesbianismo não é reconhecido. O site não consegue identificar a maioria dos figuras públicas e históricas negras que são LGBT. O Guia Oficial do Mês da História Negra no Reino Unido é igualmente omisso. Por que essas omissões? Os negros não são uma massa homogênea heterossexual. Onde está o reconhecimento da diversidade sexual dentro da história negra e de suas comunidades?

Em contraste, o Mês da História LGBT, que acontece no Reino Unido em fevereiro, dedica uma seção inteira do seu site para as vidas dos líderes negros LGBT, e exibe links para os sites do Mês da História Negra. Lamentavelmente, essa solidariedade não é recíproca. Nos sites do Mês da História Negra, eu não consegui encontrar uma seção LGBT ou um link para o Mês da História LGBT.

É bem possível que isso não seja intencional, mas às vezes o Mês da História Negra parece o Mês da História Negra Heterossexual. Negros LGBT famosos não são reconhecidos e celebrados. Ou a sua contribuição para a história e cultura negra é ignorada, ou a sua sexualidade é varrida para fora de suas biografias.

Um bom exemplo dessa negligência é a negação em torno da bissexualidade de um dos maiores heróis modernos da libertação dos negros: Malcolm X. A falta de reconhecimento talvez não seja surpreendente, dado que alguns dos seus familiares e muitos ativistas negros têm feito grandes esforços para negar suas relações com pessoas do mesmo sexo e suprimir o reconhecimento da integralidade de sua sexualidade.

Por que essa fachada? Que diferença faz se Malcolm X era bissexual? Será que isso diminui sua reputação e conquistas? Claro que não. Se ele era gay, hetero ou bissexual, isso não deveria fazer diferença. Sua importância continua, independentemente da sua orientação sexual. Contudo, muitas das pessoas que o reverenciam parecem relutantes em aceitar que o seu herói, e o meu, era bissexual.

A bissexualidade de Malcolm X é mais do que apenas uma questão de verdade e factualidade histórica. Nunca houve qualquer pessoa negra com destaque e reconhecimento global semelhantes aos de Malcolm que tenha sido publicamente reconhecida por ser gay ou bissexual. Jovens lésbicas, gays e bissexuais negros podem, como os seus semelhantes brancos, muitas vezes se sentir isolados, culpados e inseguros quanto à sua sexualidade. Eles seriam beneficiados pela presença de modelos positivos, que tiveram sucesso na vida, para dar-lhes confiança e inspiração. Quem melhor do que Malcolm X? Ele inspirou o meu ativismo pelos direitos humanos e foi um pioneiro na luta pela liberdade dos negros. Ele pode inspirar outras pessoas LGBT também.

Neste momento, não há uma única pessoa negra viva, cujo nome seja conhecido no mundo inteiro e que também seja abertamente gay. É por isso que a questão da sexualidade de Malcolm X é tão importante. Ter um ícone gay ou bissexual negro de renome internacional iria ajudar muito no combate à homofobia, especialmente nas comunidades negras e particularmente na África e no Caribe, onde a homossexualidade e a bissexualidade muitas vezes são desprezadas como uma “doença de homem branco”.

Então, quais são as evidências da orientação bissexual de Malcolm X? A maioria das pessoas se lembram dele como o principal líder nacionalista negro americano da década de 1960. Apesar das desvantagens de sua retórica anti-branco, de seu separatismo negro e de sua superstição religiosa, ele foi o principal porta-voz da consciência, orgulho e auto-ajuda negra na América. Ele falava com eloqüência e rebeldia feroz em nome da liberdade e da inspiração para os negros.

A sexualidade mutante e complexa de Malcolm nunca foi parte da narrativa de sua vida até a publicação da aclamada biografia realizada por Bruce Perry, Malcolm – The Life of a Man Who Changed Black America. Perry é um grande admirador e defensor de Malcolm X, mas isso não o impede de fazer críticas. Ele escreveu os fatos, baseado em entrevistas com mais de 420 pessoas que conheceram pessoalmente Malcolm em várias fases da sua vida, desde a infância até o seu trágico assassinato em 1965. Seu livro não é uma crítica destrutiva como alguns críticos negros afirmam, é exatamente o oposto. Perry apresenta uma história honesta e “redonda” da vida e das realizações de Malcolm que, na minha opinião, é muito mais comovente e humana que a mais conhecida (mas um pouco hagiográfica) The Autobiography of Malcolm X: As Told To Alex Haley.

Baseado em entrevistas com os amigos mais próximos de Malcolm, Perry sugere que os líder da libertação negra dos EUA não era tão solidamente heterossexual como seus colegas da Nação do Islã e do nacionalismo negro sempre afirmaram. Ainda que Perry não faça da sexualidade de Malcolm uma grande parte de sua biografia – na verdade, esse é um aspecto bastante minoritário dela – ele não se coíbe de escrever sobre o que ouviu em suas várias entrevistas.

Ele documenta muitas relações de Malcolm com outros homens e suas atividades como profissional do sexo, que durou pelo menos um período de 10 anos, de sua adolescência até seus 20 e poucos anos, como descrevi mais detalhadamente em um artigo anterior para o Guardian. Embora Malcolm tenha se casado mais tarde e, tanto quanto sabemos, abandonado o sexo com homens, suas relações sexuais anteriores com homens sugerem que ele era bissexual e não heterossexual. Abster-se de sexo gay depois de seu casamento não muda os fundamentos da sua orientação sexual e não significa que ele era totalmente hétero.

Perto do fim de sua vida, as idéias de Malcolm estavam evoluindo em novas direções. Politicamente, ele gravitava para a esquerda. Guiado pela fé, depois de sua viagem a Meca, ele começou a abraçar o Islã mainstream, não-racial. Sua mente estava se abrindo a novas idéias e valores.

Se não tivesse sido assassinado em 1965, Malcolm poderia ter eventualmente se associado ao movimento de libertação gay e lésbica, como fizeram Huey Newton dos Panteras Negras e a líder Black Power Angela Davis, como parte da luta pela emancipação humana. Em vez disso, para servir a sua agenda política homofóbica, por mais de meio século a Nação do Islã e muitos nacionalistas negros têm reprimido o conhecimento das relações homossexuais de Malcolm. É chegado o tempo para que o Mês da História Negra conte a verdade. Malcolm X era bissexual. Aceitem isso.


Maine, Detroit e o armário

13 de novembro de 2009

Os frequentadores mais assíduos desse blog já devem ter notado que andamos um pouco reticentes. Esse é o problema de escrever como hobby – trabalho e estudo são prioritários e eventualmente o tempo aperta. Dentre as coisas que deixamos de mencionar nos últimos tempos, está a derrota na aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo no estado americano do Maine. O projeto de igualdade no casamento chegou a ser aprovado pelo Legislativo, mas uma manobra dos conservadores levou a decisão para votação popular.

E por que os conservadores deixaram matéria tão delicada nas mãos do povo? Os números explicam folgadamente essa estratégia: nas 31 vezes em que o casamento homossexual foi levado a referendos, o resultado foi o NÃO, diz a matéria da Associated Press (via Folha de SP). (Divagação breve: está literalmente em nossas mãos – no clique de nosso mouse – a chance de um resultado inclusivo numa votação de assunto LGBT: a enquete do Senado, que consulta a opinião popular acerca do PLC 122/2006. Ok, não tem o poder de um referendo, mas é importante que a gente não dê aos fundamentalistas o gostinho de dizer que a maior parte da população é contra o projeto. Se você ainda não opinou, corre lá!)

Toda essa enrolação é só para introduzir a tradução de hoje, sobre a derrota no Maine. O original foi publicado na coluna que John Corvino mantém no site 365gay. Pra quem lê em inglês, sugerimos também o texto de Amélie Chopkins, do The New Gay, sobre esse referendo.

Maine, Detroit e o Armário

Por John Corvino (escritor e professor de filosofia da Universidade Estadual do Wayne, em Detroit)

Quando eu era a “bicha” na pracinha da escola, apanhar doía mesmo quando eu sabia o que ia acontecer. Foi o que aconteceu com o Maine semana passada.

Como muitos, eu estava desanimado, mas não fiquei surpreso quando perdemos. Os direitos das minorias (gays, especialmente), geralmente não se saem bem quando submetidos à votação popular. E a mensagem central da oposição – que os gays querem influenciar crianças em idade escolar – mantém-se tão eficaz quanto sinistra.

A mensagem evoca a imagem de gays como molestadores de crianças, um mito desmascarado, mas nunca totalmente extinto.

A versão um pouco menos sinistra (mas ainda assim falsa) nos retrata como anti-família e anti-moral. Ainda há uma outra mentira que é a de que estamos tentando “recrutar”.

Então aí está a verdade subjacente que sustenta o mito como plausível. Sim, é claro que a igualdade da união homossexual irá afetar o que as crianças aprendem nas escolas, porque se o casamento entre pessoas do mesmo sexo for legal, elas naturalmente aprenderão que ele é legal. Que o casamento é uma opção para os adultos que assim consentem e desejam. Que às vezes mulheres se apaixonam por mulheres e homens por homens, e vivem felizes para sempre.

Nós não devíamos ter vergonha de dizer essas coisas, mas temos. Sem dúvida, a feiúra das versões sinistras – sem esquecer a propensão dos nossos adversários para nos citar fora de contexto – nos deixa nervosos sobre discutir a versão verdadeira. E isso é certamente uma lição dessa perda: o armário ainda é poderoso, e os nossos adversários o usam em proveito próprio.

Mas nós não vamos voltar para o armário novamente.

Nós vamos continuar contando nossas histórias. Continuaremos mostrando nossos rostos. Vamos continuar nos casando, mesmo se – por ora – o estado do Maine não reconhecer legalmente os nossos relacionamentos. Nós não vamos voltar ao armário novamente.

E apesar de termos perdido essa batalha específica, vamos continuar a ganhar a guerra.

No mesmo dia em que os eleitores do Maine não aprovaram a igualdade no casamento, Detroit (a cidade onde vivo) elegeu um presidente do conselho municipal abertamente gay. Isso, em uma cidade composta por 84% de afro-americanos e onde as igrejas exercem influência política considerável. O resto do país quase não percebeu, mas Detroit desafiou vários estereótipos na terça-feira.

Seu nome é Charles Pugh. Antes de concorrer para a Câmara Municipal, Pugh era um apresentador popular e foi aprovado tanto pelo Conselho de Pastores Batistas quanto pela AME Ministerial Alliance (Aliança Ministerial). Eles sabiam que ele era gay e aprovaram seu nome mesmo assim.

Alguém poderia argumentar que Pugh foi indicado – e venceu – por causa do reconhecimento de seu nome. Detroit elege todos os nove conselheiros-gerais, e o mais votado torna-se automaticamente presidente do conselho. É um sistema estúpido por vários motivos que, no passado, resultou na nomeação de membros de conselho famosos mas incompetentes – Martha Reeves, de Martha and the Vandellas, salta à mente. (Aliás, nas votações primárias deste ano, Reeves foi deixada de fora, e na eleição geral uma esmagadora parte dos eleitores aprovaram um referendo para os conselhos distritais).

Mas mesmo que a enxurrada de votos de Pugh possa ser atribuída à sua popularidade enorme, isso nos envia uma mensagem encorajadora sobre o modo como o mundo está mudando. Ser abertamente gay não é mais um obstáculo absoluto para a obtenção de apoio público. E mesmo aqueles que regularmente se opõem a nós, por vezes, vão deixar outros fatores triunfarem sobre o que nos tornava assustadores em outros momentos.
Enquanto isso, quanto mais eles nos conhecem, menos assustadores nos tornamos.

É injusto e lamentável que tenhamos que trabalhar mais do que os nossos adversários para vencer. Eles ganham por explorar o medo, o que é fácil de fazer quando se está em maioria. Nós ganhamos construindo relações – deixando os eleitores saberem quem realmente somos. Isso leva tempo.

Assim, os nossos adversários têm a vantagem de poder nos tirar do contexto, mas temos uma vantagem a longo prazo. O armário está desmoronando.

Na esteira da perda de Maine, vamos tomar fôlego e prosseguir. Nós continuaremos a viver nossas vidas, vamos continuar falando a nossa verdade. Vamos fincar o pé na firme convicção de que nosso amor é real, é valioso, e é digno de tratamento igual perante a lei.

Porque, seja qual for o obstáculo legal que possam colocar em nosso caminho, nós nunca mais vamos voltar ao armário novamente.

(Agradecimentos mil à minha digníssima consorte, Germana Etges, pela tradução do texto)

 

 


Transgêneros e os hormônios

6 de novembro de 2009

No início do mês passado, falamos pela primeira vez sobre transgenerismo, num post explicando as diferenças entre os TTTs que formam nossa sigla. Hoje, aproveitamos o espaço para aprofundar essa discussão. O artigo de hoje foi originalmente publicado em um periódico sobre ética médica da Clínica Lahey (quem quiser ver a diagramação original da revista, pode baixar esse PDF).

Por ser um texto científico, a linguagem está um pouco mais truncada do que o costumeiro aqui no Homomento. Apesar disso, o artigo desconstrói muitos mitos que se possa ter em relação à transexualidade, e fornece as bases para que possamos discutir não só o tratamento hormonal, mas também a possibilidade de despatologização dessa condição.

Transgenerismo

por Dr. Norman Spack (Professor assistente de Pediatria na  Harvard Medical School e Diretor Clínico da Divisão de Endocrinologia do Children’s Hospital, em Boston)

Indivíduos transgêneros são pessoas que, por todas as características biológicas conhecidas, são do sexo masculino ou feminino, mas se sentem como um membro do sexo oposto. O desconforto que sofrem é chamado de disforia de gênero. Essa é uma condição relativamente rara e não pode ser explicada por fatores como cromossomos, exposição a toxinas ou hormônios no período pré-natal, variabilidade genital, níveis de circulação de hormônios após o nascimento, gênero de criação, ordem de nascimento, ou a presença ou ausência de irmãos do mesmo sexo.

É possível que os cérebros dos transexuais sejam “conectados” de uma forma única? Diferenças sutis entre os cérebros masculino e feminino são relatadas há décadas em pesquisas, que colorem os núcleos acumbentes do cérebro de amostras retiradas pós-mortem para identificar diferenças de tamanho relacionadas ao sexo. 1 Um estudo recente mostrou que os núcleos de transexuais homem-para-mulher (MTF) são do tamanho dos núcleos das mulheres genéticas. 2 Um estudo anterior revelou que os homens vítimas de câncer de próstata que tinham sido tratados durante anos com hormônios femininos, e também mulheres vítimas de tumores adrenais virilizantes, tinham núcleos de acordo com seu sexo genético. 3 A exposição a hormônios não afetou as especificidades de gênero dos núcleos de seus cérebros.

A disforia de gênero é listada como uma condição psiquiátrica no manual de códigos de diagnóstico psiquiátrico DSM-IV. Eu acredito que as manifestações psiquiátricas são uma reação à situação, não ao problema subjacente. Um indivíduo transgênero que não passou por terapia hormonal ou cirurgia pode necessitar de medicação psicofarmacológica, mas depois que um paciente recebe tratamento médico e/ou cirúrgico, os medicamentos psicotrópicos são muitas vezes desnecessários.

Quase todos os adultos transgêneros relatam a sensação de estar no corpo errado desde a infância. As histórias dos pacientes estão em sintonia com a prática comum de se vestir secretamente com roupas do sexo oposto durante a infância. No entanto, a idade em que um indivíduo transgênero reconhece plenamente a sua identidade de gênero varia, de meados da infância até a meia idade. Esse reconhecimento atrasado geralmente pode ser atribuído ao medo da estigmatização e rejeição pela família, amigos e empregadores.

A maioria das crianças que manifestam interesse recorrente em ser o sexo oposto não são transexuais, embora muitos se tornem homossexuais. 4 Uma pequena percentagem de crianças que são enfáticas e consistente no seu desejo de ser do sexo oposto (menos de 20% dos acima) prefere ser chamada por um pronome e nome coerente com sua identidade de gênero. Seus amigos, roupas e atividades correspondem a essa identidade. Seu maior medo é a puberdade, devido a mudanças irreversíveis que ameaçam a forma como elas são percebidas (a sua “atribuição de gênero”). Durante a adolescência, quando características sexuais secundárias indesejadas e permanentes transformam o corpo do paciente em uma forma adulta que não condiz com o cérebro, depressão e ansiedade são reações típicas. Quando a menstruação se torna um lembrete mensal de feminilidade em uma adolescente com uma identidade masculina, o comportamento auto-destrutivo é comum. A incidência de suicídio entre os jovens transexuais é alta. 5 Transgêneros adultos que consideram perigoso reconhecer publicamente a sua identidade de gênero podem acabar adotando um estilo de vida de casamento e paternidade que corresponda ao seu sexo genético. Inevitavelmente, a manutenção desta mentira cobra seu preço psíquico.

Quem é qualificado para avaliar a condição de um paciente para encaminhá-lo para tratamento hormonal e, finalmente, cirurgia? As “normas de atendimento” foram criados pela Harry Benjamin International Gender Dysphoria Association, uma sociedade médica que inclui profissionais de saúde mental, endocrinologistas, especialistas em medicina interna e cirurgiões. Essas normas definem os estágios do tratamento, começando com a “exploração extensiva das questões psicológicas, familiares e sociais” por um profissional de saúde mental com profunda experiência de trabalho com essa população, e só então se passa para a intervenção física, que deverá ocorrer em fases, indo das intervenções reversíveis para as irreversíveis.

Os médicos podem ficar inseguros quanto a como se dirigir aos pacientes transexuais que não mudaram legalmente seu nome e sexo, mas tenham realizado a transição para um papel de gênero compatível com sua identidade de gênero. Alguns estados exigem cirurgia reconstrutiva – genitoplastia ou mastectomia – antes de permitir alterações de nome e sexo em documentos como carteiras de motorista e cartões de plano de saúde. Tendo feito ou não as mudanças legais ou passado pela cirurgia, transexuais têm direito à dignidade de serem chamados pelo nome e pronome de sua escolha. Deve-se oferecer vestidos para as pacientes homem-para-mulher na sala de exame, e deve-se perguntar aos pacientes mulher-para-homem (FTM) o que eles preferem usar durante o exame. Nenhuma pressuposição deve ser feita sobre a orientação sexual do paciente. Como qualquer pessoa, um indivíduo transexual pode ser hétero, homo ou bissexual. A orientação sexual reflete a atração física, não a identidade de gênero.

A classificação do transgenerismo como uma condição psiquiátrica tem o efeito irônico de induzir problemas psicológicos nos indivíduos transgêneros. Isso alimenta a idéia de que um transtorno psiquiátrico é o cerne do problema, que influencia a codificação do diagnóstico e as estruturas de cobrança pelo tratamento. Sob o código do DSM-IV, alguns planos de saúde nos Estados Unidos cobrem o custo da terapia de reposição hormonal. Mastectomias em FTMs, que custam entre US$ 6.000 e US$10.000, e genitoplastias (cirurgia de reconstrução genital) em MTFs, cujo valor vai de US$15.000 a US$25.000, são consideradas pela maioria dos planos como sendo cirurgias estéticas em pacientes com uma doença mental.

Para permitir que os pacientes daçam a transição física, a produção endógena de hormônios sexuais precisa ser reduzida a níveis compatíveis com o gênero de escolha, o que pode não ser fácil. Tanto MTFs como FTMs necessitam de doses adicionais de “crosshormones”: estrogênio para MTFs, e testosterona para FTMs. Altas doses de estrogênio representam um risco de coágulos sanguíneos, que podem ser fatais se se dirigirem para os pulmões (causando embolia pulmonar), e as doses de testosterona suficientes para prevenir a menstruação podem provocar hipertensão, acne cística e excesso de produção de hemácias, com o risco do fluxo de sangue “sedimentar”. Alternativamente, hormônios sexuais endógenos podem facilmente ser suprimidos através do uso de análogos do GnRH (hormônio liberador de gonadotrofina), que bloqueiam a liberação de gonadotrofinas (LH e FSH) pela hipófise, permitindo que o tratamento hormonal seja realizado com doses fisiológicas mais seguras de estrogênio ou testosterona. Infelizmente, os análogos de GnRH são proibitivamente caros nos EUA, e os pacientes são obrigados a tomar as doses mais elevadas de esteróides sexuais até terem suas gônadas removidas. Genitoplastia em MTFs e mamoplastia redutora em FTMs não são cobertos pela maioria dos planos de saúde, e os pacientes podem ter que passar anos economizando para realizar essas cirurgias.

Na Holanda e na Bélgica, um plano nacional de saúde cobre todas as despesas relacionadas com a avaliação e tratamento das pessoas transexuais, incluindo crianças. 6 Equipes interdisciplinares de gênero avaliam psicologicamente os pacientes, que se tornam potenciais candidatos à cirurgia reconstrutiva de sexo às custas do governo, depois de viver durante pelo menos um ano no gênero de escolha (a “experiência da vida real”), tomando os hormônios sexuais correspondentes. Essa discrepância na cobertura em diferentes países levanta questões sobre as políticas decisórias nos planos de saúde dos EUA.

Como o tratamento com hormônios do sexo oposto tem efeitos irreversíveis, decisões difíceis inevitavelmente aparecem. Para a MTF, o estrogênio leva ao desenvolvimento mamário e à redução da produção de espermatozóides. Algumas MTFs requerem o armazenamento de esperma antes do tratamento de estrogênio ou gonadectomia apenas para manter sua capacidade reprodutiva, independentemente de quem vai receber o esperma. Para os FTM, a testosterona produz uma voz grave, surgimento de pelos faciais, calvície temporária. Em seguida, vêm o fim da ovulação e da menstruação, e os ovários tornam-se policísticos, ainda que mantendo os óvulos recuperáveis. Quando a criopreservação de óvulos tornar-se um procedimento de rotina e bem sucedido, alguns FTMs irão solicitar o procedimento para servir como doadores de óvulos para o sua parceira ou substituta.

Uma questão ética importante em relação ao tratamento de transgêneros diz respeito às intervenções potenciais em crianças. Será que as crianças transgêneras que tiveram uma avaliação cuidadosa e prolongada por habilidosos especialistas em gênero deveriam ser obrigados a passar por toda a puberdade antes de ter acesso à mesma terapia utilizada em adultos? Não existe nenhum protocolo nacional ou internacional, e os pontos de vista sobre como proceder são diametralmente opostos. Um lado argumenta que a intervenção física deve ser adiada até o término da puberdade, porque os adolescentes são mais propensos do que os adultos a mudar de idéia sobre sua identidade de gênero. A opinião contrária, com a qual concordo, ddefende a intervenção endocrinológica precoce para prevenir a depressão grave, que acompanha o aparecimento de uma puberdade indesejável e evita o procedimentos fisica e psicologicamente dolorosos necessários para inverter as manifestações físicas dessa puberdade.

Um modelo de protocolo empregado atualmente na Holanda começa com um longo processo de seleção adolescentes púberes de gênero variante na fase “Tanner 2” do desenvolvimento puberal: surgimento das mamas nas meninas e volume testicular de 8 cc, que precede o aumento fálico nos meninos. Nesta fase, as manifestações da puberdade são reversíveis. Análogos de GnRH são utilizados por pelo menos dois anos, potencialmente até os 16 anos de idade, quando adolescentes na Holanda são considerados capazes de consentir com o tratamento com crosshormones. Ao bloquear a puberdade, o tratamento de GnRH dá tempo para que os FTMs atinjam uma altura mais tipicamente masculina, e para a avaliação contínua do desejo de todos os pacientes para a transição. Se a avaliação clínica holandesa se provar médica e psicologicamente segura, ela se tornará o padrão de atendimento na Holanda, e o tratamento será coberto pelo seguro de saúde do governo.

É improvável que a adoção de tal terapia nos EUA, exceto por um protocolo de pesquisa, seja reembolsada pela maioria das operadoras de planos de saúde enquanto transgenerismo continuar a ser codificado e descrito como uma condição psiquiátrica. A única droga alternativa capaz de alcançar a supressão gonadotrófico comparável é a utilização de altas doses de progesterona, que tem efeitos semelhantes à dose alta de prednisona ou cortisona e pode produzir supressão do ACTH, retenção de líquidos, “cara de lua cheia”, obesidade central e resistência à insulina.

“Puberdade precoce” é a única indicação aprovada para uso pediátrico da terapia de análogos de GnRH nos EUA. Para um plano de saúde pagar por esse medicamento, o médico teria que usar esse diagnóstico para um FTM de 11 anos ou uma MTF de 12, apesar de o paciente dificilmente satisfazer os critérios etários de precocidade sexual. Se o protocolo holandês for aprovado pela Harry Benjamin Society, seria correto que os planos de saúde americanos não fornecessem o pagamento de GnRH em adolescentes devidamente classificados como transgêneros?

Indivíduos transgêneros enfrentam há muito tempo discriminação nas instituições médicas, incluindo consultórios médicos e hospitais. 7 Evocando uma abordagem não muito antiga de médicos e psiquiatras em relação à homossexualidade, alguns profissionais de saúde sustentam que o objetivo do tratamento psiquiátrico é convencer as pessoas transexuais a permanecer no papel de gênero de seu sexo genético, o que é uma impossibilidade para a maioria dos pacientes. Todos os envolvidos na assistência ao paciente deveriam ter alguma consciência dos transtornos de identidade de gênero, ainda que esses casos sejam raros. Médicos de atenção primária interessados em fornecer terapia de reposição hormonal para pacientes transexuais devem consultar o Harry Benjamin Society Standards of Care. Médicos e profissionais de saúde mental que não se sintam confortáveis nem possuam conhecimentos suficientes para tratar os pacientes transexuais devem encaminhá-los a colegas mais experientes.


Notas de Rodapé

1 Woodson JC and Gorski RA. Structural differences in the mammalian brain: reconsidering the male/female dichotomy. In Matsumoto A (ed.) Sexual
Differentiation of the Brain
, New York and London: CRC Press, 2000.

2 Kruijver FP et al. Male-to-female transsexuals have female neuron numbers in a limbic nucleus. J Clinical Endocrinology & Metabolism. 85(5):2034-41, 2005.

3 Zhou JN et al. A sex difference in the human brain and its relation to transsexuality. Nature. 378(6552):15-16, 1995.

4 Zucker KJ and Bradley SJ. Gender Identity Disorder and Psychosexual Problems in Children and Adolescents, New York and London: The Guilford Press, 1995

5 Kreiss JL and Patterson DL. Psychological issues in primary care of lesbian, gay, bisexual, and transgendered youth. Journal of Pediatric Health Care. 11(6):266-74, 1997

6 Cohen-Kettenis PT and Pfafflin F. Transgenderism and intersexuality in childhood and adolescence. Making choices, Thousand Oaks and London: Sage Publications, 2003

7 Feinberg L. Transgender warriors, Boston: Beacon Press, 1996 Additional readings Boylan JF. She’s not there. New York: Broadway, 2003

Leituras Adicionais

Brown ML and Rounsley CA. True Selves: Understanding transsexualism – for families, friends, coworkers, and helping professionals, San Francisco: Jossey Bass, 1996

Israel GE and Tarver DE. Transgender Care, Philadelphia: Temple U. Press, 1997

 

 

 


História Queer e História Americana

30 de outubro de 2009

No encerramento de nossa semana dedicada à História LGBT, a tradução dessa sexta ressalta um ponto muito importante: quando se estuda a vida de LGBTs em outras épocas, não se pode perder a noção do conjunto. É impossível desvincular a história dos LGBTs do restante da História que estudamos no colégio – afinal, a sociedade que ainda hoje resiste a aceitar as sexualidades não-hétero é a mesma que hoje nega a existência do racismo, por exemplo, e os mecanismos que impedem a conquista plena da igualdade para um e outro grupo remontam ao mesmo passado.

Mais uma vez, traduzimos um artigo da Enciclopédia GLBTQ, de onde já tiramos a história das marchas em Washington. Hoje, em vez de um verbete, trazemos uma coluna de opinião.  Vicki Eaklor, a autora, é membro da American Historical Association e publicou o livro Queer America: A GLBT History of the 20th Century (Greenwood Press, 2008).

História Queer / História Americana

por Vicki Eaklor

Conforme eu ia escrevendo Queer America, o meu objetivo era o de oferecer uma fonte completa, ainda que concisa, para alunos, professores e qualquer outra pessoa que procurasse aprender alguma coisa sobre a experiência GLBTQ nos Estados Unidos nos últimos cem anos.

A necessidade desse livro surgiu a partir do meu próprio trabalho: cerca de quinze anos antes, eu tinha introduzido o curso “História Gay Americana” ao currículo da Alfred University, e de início achei difícil organizar uma lista de leituras. Desde então, como sabemos, o campo da história GLBTQ explodiu, com centenas de estudos maravilhosos sobre indivíduos e movimentos, abordagens e argumentos, constantemente levando-me a reconsiderar o conteúdo e o método de meu curso e minha pesquisa.

No entanto, dois temas com os quais comecei minha trajetória no ensino permanecem os mesmos e, na verdade, tiveram sua importância ampliada conforme eu escrevia o livro: a magnitude de nossa história – ela é tão vasta -, e o fato de que o passado GLBTQ, longe de ser “mais uma história” é parte integrante da história americana.

Dada a forma como a história é dividida em campos, tem sido relativamente fácil aceitar a guetificação desenvolvida desde os anos 60, quando os novos historiadores sociais começaram a reintegrar trabalhadores, mulheres, afroamericanos, indígenas, e, claro, os americanos homossexuais, entre outros, para a “história americana”. Tal era a força da história tradicional (branca, masculina, privilegiada, presumidamente heterossexual, política), porém, que a integração plena dessas histórias “minoritárias” tem acontecido lentamente, e isso quando chega a ser realizada.

O resultado é que a história dos EUA que a maioria dos americanos aprende ainda se assemelha menos a um picadinho composto por muitos elementos do que a uma refeição sofisticada feita de pratos separados, a maioria dos quais é “extra” e pode ser descartada dando preferência ao prato principal, a velha carne de sempre. É chegada a hora de resistir ao impulso e à conveniência desta abordagem, mostrando a natureza integrada de uma história com a outra. Assim, chego ao meu argumento de que a história queer é história americana, e vice-versa.

A história queer e a costumeira saga americana são interdependentes, de várias maneiras. Deixando de lado os efeitos evidentes da história dos EUA sobre as pessoas queer (relatados como eras de maior ou menor grau de homofobia, de acordo com as políticas existentes contra a homossexualidade), aqui vou me focar brevemente no contrário – o impacto das pessoas e movimentos queer na história dos EUA, e a centralidade do gênero como um tema agregador.

A discussão deveria avançar sem a necessidade de dizermos que é evidente que as pessoas GLBTQ, visíveis ou não, são parte da história nacional pelo simples fato de estarem entre “o povo americano”; nós servimos nas forças armadas na guerra e na paz, fizemos parte de todas as forças de trabalho, todos os movimentos pelos direitos civis, em todos os partidos políticos, e, pelo menos no caso de James Buchanan (se não também Lincoln), podemos ter vivido também na Casa Branca.

Além disso, como Lillian Faderman argumentou brilhantemente em To Believe in Women, não é apenas a presença óbvia dos queers que deve ser reconhecida, mas muitas vezes o papel crucial que eles desempenharam em alguns dos principais eventos do país. (Faderman mostra, por exemplo, o papel central das lésbicas em todas as grandes reformas educativas e sociais nos últimos 100 anos.)

Outros exemplos de vozes queer (exploradas com mais profundidade no meu livro) incluem as do Renascimento do Harlem e do desenvolvimento do blues como uma forma de arte (Alain Locke, Langston Hughes, Bessie Smith, Ma Rainey), o desenvolvimento da arte moderna e música (Andy Warhol, John Cage); teatro e música tipicamente americanos (Tennessee Williams, Aaron Copland, Leonard Bernstein); e também aqueles que influenciaram profundamente o pensamento, a literatura e o ativismo pelos direitos civis e o feminismo no pós-guerra (Bayard Rustin, Adrienne Rich, Rita Mae Brown).

Além de modificar a história tradicional dos “nomes famosos”, contudo, a história queer sugere que esses eventos e movimentos específicos para pessoas GLBTQ estão totalmente alinhados à trajetória da história americana como ela é concebida com frequência: como uma história de extensão gradual dos direitos civis (quando não chega a uma igualdade plena) para uma proporção cada vez maior da população.

Se pensarmos nas nossas origens como nação, quando só homens brancos com posses e 21 anos ou mais de idade eram considerados cidadãos plenos, as fileiras de eleitores potenciais expandiram-se ao longo dos dois últimos séculos, com os excluídos da participação social e econômica repetidamente organizando-se em movimentos para exigir o seu lugar. O resultado disso é uma “política de identidade”, em que as mesmas características (raça, religião, sexo) usadas para justificar a discriminação tornam-se a base para a organização de grupos para combater a desigualdade.

Os chamados “homossexuais” também começaram a pensar nesses termos nos meados do século XX, e se organizar como um movimento político. Ao fazer isso, cada grupo – da sociedade Mattachine da década de 1950 e os piqueteiros da década de 1960, até a Força-Tarefa Nacional Gay e Lésbica da década de 1970, a Campanha de Direitos Humanos de 1980, e GenderPAC da década de 1990 – oferece insights importantes para a evolução da política GLBTQ, e da política da nação como um todo.

Finalmente, qualquer tentativa séria de reintegrar as pessoas queer novamente à história americana nos leva não só a repensar o que é a história e por que estudá-la, mas nos lembra o tempo todo que toda a história que omita o gênero como tema é incompleta.

No mínimo, a nossa insistência nacional na conformidade de gênero (na ideia de que os papéis de gênero são atribuídos em conformidade com o sexo das pessoas) explica muito sobre a história que temos de homofobia, já que gênero e sexualidade são confundidos com tanta frequência ( aquela pressuposição de que os homens efeminados e mulheres masculinas são também gays ou lésbicas).

O gênero também aparece em nossa história econômica e política. Será que podemos realmente compreender o capitalismo ou o militarismo sem notar que o sucesso nessas áreas depende de um culto da masculinidade?

Podemos compreender plenamente o impacto da Guerra Fria, enquanto omitirmos a mania contra homossexuais subversivos que superou até mesmo o Pavor Vermelho, seja em Washington ou em Hollywood?

Essas perguntas poderiam ser multiplicadas para incluir cada era e cada evento em nosso passado, e a resposta tácita delas (não, nos dois casos) abre mais linhas de investigação, que só podem melhorar a compreensão do nosso presente, bem como do nosso passado.


A luta contra a AIDS e a Era de Aquário

23 de outubro de 2009

Outubro é o mês da história LGBT, e procuramos refletir isso em nossas traduções. Na semana passada, falamos sobre as primeiras marchas em Washington. Hoje, trazemos um relato que resgata os tristes dias das primeiras mortes pela AIDS.

A Caminhada contra a AIDS, a Era de Aquário, e pessoas como eu

Karen Ocamb

A maioria de nós não se emociona com eventos históricos, DSC_4195 raramente parando para pensar que uma vez aconteceu algo importante naquele dia.

Os feriados religiosos, por outro lado, exigem envolvimento – nem que seja apenas comprar presentes e dividir o pão.

Mas para pessoas como eu, LGBTs e já com uma certa idade, certos eventos são tão históricos como espirituais, senão religiosos – eventos como a Caminhada da APLA contra a Aids no domingo.

Atrevo-me a dizer que muitos, se não a maioria, dos mais de 30.000 caminhantes cadastrados participaram pela bondade do seu coração, não pela necessidade de FAZER ALGUMA COISA para combater a impotência avassaladora que nos possuiu durante o tsunami da crise da AIDS entre 5 de junho de 1981 – quando o CDC publicou um relatório dos médicos LA Michael Gottlieb e Joel Weisman sobre os primeiros 5 casos de homens gays com uma nova doença rara – e 1995, quando os inibidores da protease foram aprovados pelo FDA. Até o final daquele ano, estima-se que 9,2 milhões de pessoas no mundo tenham morrido de AIDS.

A morte em massa de gays nos Estados Unidos começou a diminuir no próximo ano. Na 11 ª Conferência Internacional sobre Aids em Vancouver, em 1996, cientistas anunciaram que uma terapia de combinação de medicamentos poderia transformar a AIDS de uma sentença de morte imediata a uma doença crônica controlável. E a doença começou a passar de homens gays – que então já haviam criado organizações de apoio para a educação, prevenção e tratamento de pessoas com HIV/AIDS – para outras populações com problemas acesso a saúde.

Em Los Angeles, na verdade, o HIV/AIDS apareceu pela primeira vez na Clínica de DSTS no Centro de Serviços Comunitários Gays, em 1979. E, como os gays começaram a ficar doentes e morrer dentro de algumas semanas – e outros simplesmente desapareceram – o centro criou uma central de atendimento por telefone para tentar responder a tantas perguntas tão assustadas quanto possível, sem explicações científicas claras. Essa central de atendimento cresceu lugar ao AIDS Project Los Angeles, que também começou a oferecer capacitações sobre a AIDS com médicos como Mark Katz, que lutavam não só contra a ignorância sobre a doença, mas também contra a hostilidade da sociedade e do governo. Pelo menos 25% da sociedade, de acordo com a pesquisa Pew Research mais recente, concordou com o pronunciamento do Reverendo Jerry Falwell, que disse que “a AIDS não é apenas um castigo de Deus para os homossexuais, é castigo de Deus para a sociedade que tolera os homossexuais”.

Então a comunidade LGBT veio em sua própria ajuda, criando e financiando novas organizações. A Caminhada da APLA contra a AIDS Bradley foi criada por Craig Miller, que tinha 25 anos na época. Os organizadores esperavam arrecadar US$ 100.000 naquele 28 de julho de 1985 – mas a estrela de cinema Rock Hudson tinha acabado de anunciar que tinha AIDS e 4.500 caminhantes apareceram nos estúdios da Paramount em Melrose – arrecadando $ 673.000.

Perdi a primeira Caminhada contra a AIDS – eu ainda era relativamente nova em LA, e meio que ainda estava no armário. Mas eu acompanhei as notícias sobre ela. E é aqui que os números – de cinco homens gays em Los Angeles em junho de 1981 para 7.699 casos de Aids e 3.665 mortes por AIDS nos E.U.A. até o final de 1984 – se tornam pessoais.

Eu recém havia produzido a cobertura dos Jogos Olímpicos de 1984 para as afiliadas da CBS News – que foi minha última tarefa após dez anos de CBS News – e eu comecei a estudar para ser uma dramaturga, tendo aulas de teatro com a incrível Salome Jens.

Foi lá que aprendi minhas primeiras lições sobre a AIDS.

Um jovem que Salomé dizia estar destinado à grandeza como ator/diretor repentinamente foi parar na sala de emergência com uma doença cerebral inexplicável. Salomé correu para perto dele; ele morreu três dias depois. Na aula, sussurrava-se que ele era gay e teve a nova doença. Depois disso, vários jovens atores vigorosos começaram a definhar. Ninguém sabia o que estava acontecendo; todos tinham medo.

Quando Johnnie Pipkin internou-se pela primeira vez no hospital, ele foi mantido em isolamento, sua comida era frequentemente deixado do lado de fora, e fomos obrigados a usar máscaras, luvas e uma bata cirúrgica antes de vê-lo. Ele queria tanto ser tocado – sua família havia simplesmente lhe abandonado -, e nós – a trupe de atores, seus companheiros de AA, seu ex-amante – éramos as únicas pessoas que aquele jovem de alma boa, outrora descarado e engraçado, tinha para amá-lo.

Não avia uma ala ou ambulatório para AIDS (5P21) na época, e uma crise de Johnny o levou para o hosptal do condado onde, por não ter plano de saúde, ele foi colocado em um quarto grande, junto a homens heterossexuais com uma variedade de doenças. Eles não se importaram muito com o “gay pervertido” escondido atrás da cortina do hospital.

Outro ataque deu-lhe um quarto todo seu. Mas como o County era um hospital escola da USC, ele era refém dos caprichos da equipe de enfermagem, por vezes, cruel. Muitas vezes ele foi obrigado a suportar os estagiários repetidamente furando-o com agulhas como uma almofada, tentando, muitas vezes sem sucesso, encontrar uma veia. Eu queria gritar para eles – para exigir que eles parassem de tratá-lo como se ele não era humano. Mas em vez disso Johnnie gritou para mim, pedindo-me para não aborrecê-los para que não se recusassem a fornecer a medicação para dor quando ele mais precisava dela, à noite.

Então, eu blasfemava contra Deus. E eu me repreendia por não ser Jesus, não sendo capaz de entrar, estender minhas mãos e curá-lo. Eu estava totalmente impotente.

Eu falhei com Johnnie, também. Antes que ele perdesse a voz para o câncer em seu esôfago – o câncer que se somava à infecção por fungos na boca, à variedade de fungos em seu corpo e aos vírus agindo como Pac-Man em suas entranhas, como se a Aids foi comê-lo vivo – Johnnie pediu que eu o ajudasse a morrer. Era fácil, sério – ele insistiu. Ele beberia uma garrafa de uísque ou duas, desmaiaria, e então eu seguraria um travesseiro sobre seu rosto. Eu disse que não – eu não iria ajudá-lo a renunciar a sua sobriedade e morrer com o demônio do álcool gritando em seu cérebro. Eu ainda tenho conflitos com essa decisão.

Um dia antes que Johnnie morresse em 1986, ajudei a enfermeira domiciliar a erguer seu esqueleto de sua cama para a cadeira de rodas, para que ele pudesse olhar mais uma vez para o seu precioso Silver Lake Garden. Eu não sabia como dizer adeus, então eu só disse que eu iria vê-lo amanhã. No dia seguinte, um domingo, eu estava falando em uma reunião do AA em Pacific Palisades, quando de repente senti uma ordem espiritual para falar sobre o que estava acontecendo com os meus amigos gays. Falei com o coração, e várias pessoas choraram, inclusive eu. Quando cheguei em casa, descobri que Johnnie morreu enquanto eu falava. Eu sabia. Eu pude senti-lo.

Johnnie Pipkin foi a minha segunda morte por Aids. A primeira foi a do ator/ antor Stephen Pender, no início daquele ano. Eu estava com Stephen quando ele morreu. Eu tinha ficado com ele dia e noite, à medida que seus amigos iam e vinham de seu quarto na ala Betty Ford do Cedars Sinai Hospital. Stephen foi meu padrinho no AA e, milagrosamente, ele lembrava de mim nos meus primeiros dias de sobriedade, na reunião atrás da porta vermelha em Greenwich Village. Não deixá-lo ficar sozinho quando morreu foi a minha maneira de agradecer a ele e todos os homens gays por estarem comigo quando eu lutava contra a morte pelo vício. Muitas vezes me perguneio: por que eles e não eu?

Stephen Pender morreu no dia 15 de março de 1986. Ele tinha 35 anos. Nesse ano eu andei na Caminhada da APLA contra a Aids. Eu chorei o caminho inteiro. Eu chorei porque Stephen tinha recém aparecido em “Hill Street Blues”, e falava-se em retomar sua carreira – talvez o começo de sua carreira na TV, depois de dois musicais na Broadway. Eu fazia parte de um grupo de amigos que cuidaram de Stephen quando ele estava doente – limpando sua casa todos os dias, cozinhando alimentos macrobióticos, tentando Cantina multidão (ADJ) BW exercícios espirituais alternativos, com os quais ele não se importava muito na verdade – os 12 passos dos AA eram espiritualidade suficiente para ele – e tentando abraçá-lo sem mover o cateter de Hickman em seu peito. Todo o tempo nós sabíamos que ele estava definhando lentamente e não havia nada que pudéssemos fazer para salvá-lo.

Nessa primeira caminhada, eu chorei a perda de Stephen e a minha própria impotência. Chorei pela perda de Johnnie, que estava definhando nessa época – mas queria saber tudo sobre a Caminhada contra a AIDS: quem estava lá, o que aconteceu, qual foi a sensação de estar com tantas outras pessoas passando pela mesma coisa.

A sensação era de amor. Era de um elo comum, forjado a partir de tristeza e raiva e perda, sabendo que os estranhos ao seu lado também sabiam no fundo de suas almas qual era a sensação do coração partido e daimpotência – e, ironia da ironia – também sabiam que quanto mais profunda a dor, mais espaço para o amor.

Parecia que a Era de Aquário estava sobre nós. A era de paz e da compreensão que muitos cantamos quando os nossos entes queridos estavam sendo convocados para lutar na guerra do Vietnã, alguns voltando para casa em sacos, alguns mentalmente e emocionalmente perdidos – todos mudados.

No início, a despedida foi semelhante – dizendo adeus aos amigos na pista, quando se preparavam para lutar no exterior em uma guerra em que eles não acreditam – e dizendo adeus aos entes queridos, quando entraram em hospitais para o tempo final.

cadeira de rodas Mas a Aids foi diferente. Agora meus amigos estavam literalmente morrendo nos meus braços. Uma geração de amigos e colegas. E aqueles que caminhavam ao meu lado conheciam a profundidade daquele amor e daquela perda, também. Era o tipo de conhecimento compartilhado que poderia curar o mundo, se o mundo quisesse ouvir.

Mas o mundo não deu ouvidos para nós, então andamos. E a nossa caminhada levou à coragem de ver e ajudar outro amigo a morrer. E a nossa visibilidade era uma posição orgulhosa e desafiadora contra os Jerry Falwells e Ronald Reagans do mundo, que – em nome de Deus – condenaram a todos nós.

E a Caminhada contra a AIDS permitiu que lutássemos com os nossos corações. No início dos anos 90, o famoso cantor e ativista da People With AIDS Coalition (PWA) Michael Callen iria se despedir de nós com sua canção, “Love Don’t Need a Reason” – uma canção sobre o amor autêntico, sem vergonha. O refrão diz

0011 Pois o amor não precisa de um motivo

O amor nem sempre rima

E o amor é tudo que temos por agora

O que nós não temos é tempo.

Michael cantou essa música na Marcha em Washington de 1993, ainda que seus pulmões estivessem cheios de sarcomas de Kaposi. Ele morreu naquele 27 de dezembro – apenas horas depois que eu o deixei – Eu era uma de seus amigos e cuidadores.

Nos dias de hoje, Michael é melhor conhecido como o cara cantando em falsete em “Where the Boys Are” no filme sobre AIDS “Filadélfia”. Foi aí que a maior parte da América aprendeu sobre a Aids – e, em particular, sobre o Sarcoma de Kaposi. Essas são as manchas roxas que o personagem de Tom Hanks mostrou em seu peito durante a cena do tribunal.

Danny-Warner Sabíamos sobre os sarcomas. Na verdade, assim como a lipodistrofia ensinou a todos nós como abandonar a “imagem corporal”, os sarcomas nos ensinaram sobre o desapego da vaidade. E o ato de abandonar todos os preconceitos em relação a como um homem gay deve parecer – e ser – era em si um ato de enorme coragem espiritual. Homens como Danny Warner, um dos co-fundadores em 1983 do extinto LA Shanti em West Hollywood – uma das primeiras organizações em HIV/AIDS do mundo – se despiram da vergonha e foram ao trabalho e a eventos com marcas bem visíveis de sarcoma no rosto.

Agora, à medida que me preparo para publicar este post, aquelas 30.000 pessoas estão caminhando pelas ruas de West Hollywood e Los Angeles. Eles estão caminhando por suas próprias razões. Mas eles também estão caminhando para Johnny Pipkin e Pender Stephen e Michael Callen e Warner Danny – e para pessoas como eu, que se assumiram por causa da AIDS, que aprenderam a amar tão profundamente por causa da AIDS, e que continuam a sofrer sozinhas em pequena e grande escala.

Awla 08 A Caminhada da APLA contra a AIDS hoje é histórico – ela marca o 25o aniversário do evento. Também marca onde estivemos – na vanguarda espiritual, os artistas pavimentando a estrada de tijolos amarelos para a Era de Aquário.

Mas devemos prestar atenção ao eco desses passos, porque mais
uma vez o HIV está aumentando entre os jovens homossexuais, enquanto a homofobia e o estigma ainda nos garantem um discreto apoio das mulheres e pessoas de cor.

Então, deixe os aplausos dos apoiadores e a luz da verdade agirem sobre os caminhantes hoje. Amanhã, o dinheiro arrecadado pode salvar uma vida e capacitar uma nova geração para a AÇÃO! LUTEM! PAREM A AIDS!


História das marchas em Washington pelos direitos dos LGBT

16 de outubro de 2009

No último domingo, destacamos aqui o discurso pró-LGBT que Obama proferiu em um jantar na véspera da Marcha Nacional pela Igualdade. Na terça, também lembramos que a cantora Lady Gaga marcou presença na manifestação, reafirmando seu apoio pela causa dos homo/bi/transexuais. Mas vale a pena destacar que essa marcha não só lembra os 40 anos do levante de Stonewall, como também resgata um histórico de protestos que remonta ao final dos anos 70, em que pela primeira vez um grande grupo de ativistas LGBT reuniu-se para protestar na capital dos Estados Unidos.

O texto que traduzimos hoje conta a história das marchas em Washington pelos direitos LGBT, fazendo também uma crítica à corporativização, partidarização e perda da força do movimento nas duas últimas décadas. O artigo original é um verbete da Enciclopédia GLBTQ, fonte de consulta que recomendamos a todos aqueles que leem em inglês e se interessam pela história, cultura e personalidades LGBT. É um texto bem longo, mas vale muito a pena a leitura, até por alertar para alguns riscos a que o movimento LGBT brasileiro também está exposto.

Marchas em Washington

O movimento pelos direitos de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros nos Estados Unidos cresceu enormemente durante os últimos 25 anos do século XX, um fenômeno talvez melhor demonstrado pelo sucesso das três primeiras marchas nacionais, realizadas em Washington, DC.

Cada marcha era muito maior e mais diversificada do que a anterior, conforme um número cada vez maior de pessoas se tornaram mais abertas em relação a suas identidades sexuais e de gênero, criando uma ampla gama de subcomunidades GLBTQ.

Uma tendência menos agradável apareceu na quarta marcha: a crescente corporativização do movimento, com ativistas tendo um papel menos marcante na definição dos seus objetivos e prioridades.

[No entanto, a marcha mais recente pode ter revertido essa tendência. Organizada principalmente por jovens ativistas energizados pela aprovação da Proposição 8, que anulou a igualdade no casamento na Califórnia, a Marcha Nacional para a Igualdade de outubro de 2009 voltou-se novamente para o ativismo de base.]

A Marcha de 1979

Marcando o décimo aniversário da Rebelião de Stonewall e vindo logo após a pena tolerante conferida a Dan White pelo assassinato do supervisor de São Francisco e ativista gay assumido Harvey Milk, a Primeira Marcha em Washington pelos Direitos de Lésbicas e Gays aconteceu em 14 de outubro 1979, e foi um evento histórico que reuniu mais de 100.000 pessoas vindas de todas as partes dos Estados Unidos e de outros dez países.

Grupos nacionais de lésbicas e gays inicialmente relutaram em apoiar a Marcha de 1979, temendo que essa manifestação pública não iria atrair muitas pessoas, ou, caso conseguisse tal feito, que poderia gerar uma reação da direita conservadora semelhante à campanha “Save Our Children” de Anita Bryant em 1977. Mas essas preocupações se mostraram exageradas, à medida que a marcha ajudou a solidificar um movimento nacional pelos direitos dos homossexuais.

A marcha também contou com a I Conferência Nacional pelos Direitos de Gays e Lésbicas do Terceiro Mundo, que foi convocada pela Coalizão Nacional de Lésbicas e Gays Negros, uma organização que tinha sido criada no ano anterior por Delores Berry e Billy Jones, e atraiu centenas de afro-americanos e latinos.

A marcha de 1987

Em 11 de outubro de 1987, mais de meio milhão de pessoas (entre 500.000 e 650.000, segundo os organizadores) dirigiu-se à capital para participar da Segunda Marcha Nacional em Washington pelos Direitos dos Homossexuais. Muitos dos manifestantes estavam irritados com a resposta lenta e inadequada do governo para a crise da AIDS, bem como com a decisão da Suprema Corte em 1986 que manteve as leis da sodomia no caso Bowers v. Hardwick.

Com a primeira apresentação do Projeto NAMES – AIDS Memorial Quilt (uma colcha de retalhos em que cada pedaço de tecido traz o nome de uma pessoa morta pela doença), a marcha de 1987 conseguiu chamar a atenção do país para o impacto da AIDS na comunidade gay. Na sombra do Capitólio, um patchwork formado por quase dois mil painéis de tecido ofereceu uma poderosa homenagem para a vida de alguns daqueles que foram perdidos no pandemia.

A marcha também chamou a atenção para a discriminação anti-gay, já que cerca de 800 pessoas foram presas em frente à Supremo Corte dois dias depois, na maior ação de desobediência civil já realizada em prol dos direitos de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros.

A Marcha de 1987 em Washington também estimulou a criação do que ficou conhecido como BiNet E.U.A., e da Organização Nacional de de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros Latinos (Organização LLEGÓ, na sigla original), os primeiros grupos nacionais para bissexuais e latinas e latinos GLBTQ, respectivamente.

Antes da marcha, os ativistas bissexuais distribuíram um panfleto intitulado “Você está preparado para uma Rede Nacional de Bissexuais?” que incentivou os membros da comunidade para fazer parte do primeiro contingente bissexual em uma manifestação nacional. Cerca de 75 bissexuais de todo os E.U. participaram e começaram a lançar as bases para uma organização que pudesse falar sobre as necessidades de pessoas identificadas como bi, e combater a animosidade contra bissexuais que era comum tanto nas comunidades gays e lésbicas como na sociedade dominante.

Em 1987, ativistas GLBTQ Latinos de Los Angeles, Houston, Austin e outros lugares já vinham se reunindo há pelo menos dois anos, discutindo formas de trabalhar juntos para promover os direitos fundamentais e a visibilidade de latinos e latinas GLBTQ. Mas com a AIDS exercendo um impacto desproporcional sobre comunidades latinas de GLBTQ em todos os Estados Unidos, os ativistas reconheceram a necessidade de uma organização nacional e se reuniram na Marcha em Washington para formar o grupo que foi primeiramente chamado Lésbicas e Gays Latinos Ativistas Nacionais (NLLGA, na sigla em inglês). Renomeado como LLEGÓ no ano seguinte, o grupo expandiu-se a partir daí para atender também demandas relativas aos direitos de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros latinos de outros países.

Além da formação de novos grupos nacionais, os efeitos mais duradouros dos eventos desse fim de semana também foram sentidos em nível local. Energizados e inspirados pela marcha, muitos ativistas voltaram para casa e estabeleceram grupos sociais e políticos em suas próprias comunidades, proporcionando maior visibilidade e força para a luta de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros.

A data da marcha, 11 de outubro, tem sido comemorada internacionalmente desde então como o Dia Nacional para Sair do Armário, para inspirar os membros da comunidade GLBTQ a continuar mostrando, como um dos slogans da Marcha proclamou, que “estamos em todos os lugares.”

A Marcha de 1993

A força crescente do movimento ficou evidente seis anos depois, em 25 de abril de 1993, quando quase um milhão de pessoas participou da Marcha em Washington pela Igualdade de Direitos e Libertação de Lésbicas, Gays e Bi. Essa foi a maior manifestação na história dos Estados Unidos naquela época.

Com a derrota da candidatura de George Bush para a reeleição no outono anterior, que deu fim à era Reagan-Bush, o humor da marcha era muito mais festivo e esperançoso do que em 1987.

A marcha de 1993 recebeu uma cobertura da mídia sem precedentes para um evento GLBTQ, incluindo uma reportagem de capa na revista Newsweek e reportagens na primeira página de muitos jornais em todo o país.

A marcha também foi inovadora por receber a aprovação unânime do conselho da Associação Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor – a primeira vez que laços institucionais diretos foram estabelecidos entre o movimento dos direitos GLBTQ e o movimento dos direitos civis – e por explicitamente incluir bissexuais em seu nome (embora o Comitê de Direcção da Marcha tenha votado para acrescentar apenas “bi”, temendo que a palavra “bissexual” poderia sexualizar excessivamente a imagem do evento). Embora as tentativas de acrescentar a palavra “transgênero” ao nome da Marcha tenham falhado, os direitos dos trans foram incluídos na lista de demandas da Marcha.

O fracasso do governo em responder adequadamente à crise da Aids continuou a ser uma preocupação importante, mas outras questões GLBTQ também foram destacadas durante a marcha. O direito de lésbicas, gays e bissexuais de servir nas forças armadas foi um tema especialmente proeminente, já que o presidente Clinton não obteve êxito em cumprir sua promessa de campanha de revogar a proibição.

Além da marcha, os participantes puderam participar em mais de 250 eventos relacionados, incluindo conferências, seminários, protestos, lobby no Congresso, danças, leituras e cerimônias religiosas.

A Marcha de 2000

Enquanto as três primeiras marchas em Washington foram esforços majoritariamente de base, com uma ampla parte da comunidade GLBTQ representada nas comissões organizadoras, a Marcha do Milênio em Washington pela Igualdade, em 2000, foi convocada e dirigida pela Human Rights Campaign e pela Fraternidade Universal das Igrejas de Comunidades Metropolitanas, com uma reduzida consulta inicial dos grupos locais, estaduais e nacionais.

Para tentar apaziguar as críticas de que o evento estava sendo planejado por uma parcela branca, rica, e relativamente integrada à sociedade do movimento GLBTQ, os organizadores da marcha promoveram uma representação da diversidade da comunidade no conselho de diretores. No entanto, permaneceram as críticas acerca do caráter fechado do processo de planejamento, e da falta de uma agenda política e de propósitos coerente em relação aos desfiles anteriores.

O foco parecia estar, principalmente, no entretenimento e nos patrocínios fornecidos por empresas. Devido a estas preocupações, muitos proeminentes líderes GLBTQ se uniram em um movimento de boicote, e algumas organizações GLBTQ se opuseram à Marcha ou posteriormente retiraram o seu apoio a ela, incluindo a Força-Tarefa Nacional de Gays e Lésbicas e o Fórum de Lideranças Negras Gays e Lésbicas.

As disputas resultaram numa Marcha do Milênio menor e menos diversa do que as de 1987 e 1993. Cerca de 200.000 pessoas participaram do comício. Outros eventos principais incluíram um show, uma cerimônia de casamento envolvendo cerca de 1.000 casais de pessoas do mesmo sexo nos degraus do Lincoln Memorial, e um festival de lojas e entretenimento gay-friendly.

A festa pretendia arrecadar fundos para grupos locais GLBTQ, mas perdeu dinheiro, levando a acusações de gastos inadequados e a uma investigação do FBI sobre o roubo de centenas de milhares de dólares. A Marcha do Milênio, assim, terminou da mesma forma que começou: em controvérsia.

Apesar do relativo fracasso da Marcha do Milênio, as marchas em Washington a favor dos direitos das pessoas GLBTQ são uma parte importante do movimento moderno pela igualdade.

Marcha Nacional pela Igualdade em 2009

[A Marcha Nacional pela Igualdade em 11 de outubro de 2009 nasceu da frustração: a frustração com a perda do direito ao casamento gay e outros em consultas populares; frustração com a alegada cooptação do movimento pelos direitos dos homossexuais pelo Partido Democrata, e frustração com o fracasso do presidente Obama em cumprir as promessas que fez em sua campanha de 2008 para a presidência.

A marcha, que foi organizada às pressas em apenas seis semanas, inicialmente sem o apoio das principais organizações de direitos dos homossexuais, foi convocada pelos ativistas veteranos Cleve Jones e David Mixner, mas aqueles que responderam à chamada e fizeram da Marcha um sucesso eram principalmente jovens ativistas que haviam sido impelidos à ação pela aprovação da Proposição 8 na Califórnia, que eles atribuíram a uma falha de visão e estratégia por parte das organizações políticas gays já estabelecidas.

A decepção desses jovens ativistas com a derrota naquela eleição foi agravada pela sua desilusão com o governo de Obama, que parecia distanciar-se das promessas que foram feitas na eleição presidencial de 2008, especialmente o fracasso em por um fim à política Don’t Ask, Don’t Tell, que se proíbe o alistamento de gays e lésbicas no serviço militar.

O contraste entre as atitudes da elite do movimento político gay e dos ativistas de base ganhou destaque pelo fato de que na véspera da Marcha, quando o presidente Obama dirigiu-se ao jantar nacional da Human Rights Campaign, ele foi recebido por piqueteiros que chamaram a atenção para o seu fracasso no avanço dos direitos gays nos primeiros nove meses de sua presidência.

Na chamada da Marcha, Jones e Mixner enfatizaram a necessidade de uma mudança nos rumos do movimento. Jones definiu a prática atual de luta por direitos em nível local como uma estratégia fracassada. “A busca infinita por frações de igualdade, estado por estado, município por município, localidade por localidade não é suficiente”, disse ele ao New York Times.”Até que nossas ações cheguem ao nível federal, cada uma dessas vitórias locais – não importa quão importantes elas sejam – cada uma é incompleta e impermanente.”

Apesar dos detratores, como o congressista Barney Frank, que disse que a marcha foi um exercício de futilidade que só faria pressão nas bases, a Marcha da Igualdade atraiu mais de 250.000 participantes altamente diversificados, mas predominantemente jovens. E já que a marcha foi promovida principalmente por blogueiros através da Internet, o seu sucesso em si era um tributo ao poder da World Wide Web.

O clima em 2009 foi bem menos festivo que o da Marcha de 1993. O foco estava na necessidade de um ativismo de base, o que sugere uma falta de fé nas grandes organizações políticas de gays e lésbicas, vistos por muitos como tendo sido cooptadas pelo Partido Democrata, que em si foi visto como tendo mais interesse em arrecadar fundos junto aos GLBTQ do que na promulgação de leis que promovam a igualdade de direitos.

Julian Bond, presidente da Associação Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor, proferiu o discurso principal. Ele não aliou-se pessoalmente à agenda dos direitos dos homossexuais, como também apontou as continuidades entre o movimento dos direitos civis e do movimento gay e lésbico.

Outros oradores foram Cleve Jones, o cineasta vencedor do Oscar Dustin Lance Black, a atriz Cynthia Nixon, a cantora Lady Gaga, o Tenente e ativista para a revogação da “Don’t Ask, Don’t Tell” Dan Choi, ativista pela legislação dos crimes de ódio Judy Shepard (a mãe do estudante universitário assassinado Matthew Shepard), e David Mixner.

Mixner captou o espírito da Marcha perfeitamente com as seguintes palavras: “Quando as pessoas me dizem para ser paciente, quando as pessoas dizem, ó Senhor, não agora. Tudo o que consigo pensar é em quantas lágrimas mais devem ser derramadas para que alguns políticos ao nosso redor possam descobrir quando será o momento conveniente para se juntar a nós e à nossa luta pela liberdade.”