Retrospectiva LGBT de 2009

4 de janeiro de 2010

Escrever retrospectivas já é, por si só, uma tarefa ingrata. A pretensão de abranger os mais importantes fatos relacionados a homossexuais ao redor do mundo durante os 365 dias que compuseram 2009 parece então praticamente inalcançável; quis por isso apenas relembrar alguns acontecimentos, com ajuda de arquivos de sites de notícias gays e da própria Wikipedia. Encarem essa postagem não com a imponência da palavra retrospectiva, mas como um refresco na memória para alguns pontos que chamaram a atenção durante o ano. É bom ressaltar que, no intento de fazer também uma retrospectiva local, deixei o Brasil de fora. Comecemos então?

O avanço dos direitos coloridos
O ano de 2009 está inserido no processo de avanço dos direitos homoafetivos que a comunidade internacional vem assistindo desde que a Holanda aprovou, pioneiramente, o casamento igualitário no ano de 2001. Já a partir de 1o de janeiro de 2009, pessoas do mesmo sexo poderiam começar a se casar na Noruega. Em fevereiro, é vez da Hungria e do Hawaii concederem aos casais gays todos os benefícios da união civil, exceto a adoção – benefício esse que, na Dinamarca, é concedido em março. A Suécia legaliza o casamento em abril, com efetividade marcada o mês seguinte. No segundo semestre, os avanços esfriam mas a discussão não pára. O Uruguai foi grande destaque na América Latina, aprovando leis de adoção e casamento que apenas aguardam sanção.

No final de outubro, o Matthew Shepard Act foi aprovado nos EUA e a homofobia foi criminalizada a nível federal. Por sinal, apesar de dependerem da vontade de 50 estados, um a um, os Estados Unidos testemunharam grande avanço LGBT em 2009, presenciando inclusive um boom casamenteiro com as conquistas em Colorado, Wisconsin, Nevada, Vermont, Iowa e até Washington DC, mesmo apesar da sofrida derrota em Maine. Na Áustria, em dezembro, a união civil entre homossexuais foi aprovada, para entrar em vigor no primeiro dia de 2010 e começarmos o ano já com boas notícias. Em Portugal, a eleição de José Sócrates para primeiro ministro acompanha o compromisso do seu partido de aprovar o matrimônio, o que em dezembro já estava em intensa discussão, com direito a plebescito: provavelmente em 2010 nossos colegas lusófonos já poderão juntar os trapinhos com pessoas do mesmo sexo.

Gays no exército?!
A questão militar foi tema para discussão: em março, Argentina e Filipinas eliminaram medidas proibitivas para a presença assumidamente homossexual nos exércitos. Dois meses depois, o Uruguai entra no coro. Nos Estados Unidos, no entanto, a política do “Don’t Ask, Don’t Tell” (algo como “não pergunte, não fale”) segue nos exércitos, e homens de carreira sólida são demitidos por terem sua intimidade trazida à tona. Em julho o tema foi amplamente debatido quando o soldado inglês James Wharton saiu na capa da publicação oficial do Exército Britânico, a revista Soldier, em que fala sobre sua homossexualidade. Wharton tem tomado, desde então, uma postura ativista, participando de vários eventos LGBTs. Cabe lembrar que o Reino Unido baniu essas medidas proibitivas há nove anos, celebrando desde então a diversidade dentro das Forças Armadas.

Califórnia, a Miss Antipatia
Em fins de 2008, a Proposition 8 significou um retrocesso para a comunidade LGBT norteamericana, tirando-lhes o recém concedido direito de se casar. O assunto gerou polêmica em âmbito nacional, alcançando seu ápice durante o Miss Estados Unidos de 2009: quando o blogueiro Perez Hilton perguntou à Miss California, Carrie Prejean, o que ela achava da privação de direitos, a candidata se posicionou negativamente. Muitos diziam que ela era a favorita para a faixa, mas que por conta da argumentação preconceituosa, restou-lhe o segundo lugar.

Prejean chegou a esboçar uma carreira de portavoz da forte campanha antigay dos Estados Unidos, tendo passado no primeiro semestre a impressão de tornar-se a estrela homofóbica do ano. Alguns escândalos porém, afastaram os religiosos da quase miss, e o anonimato parece ser a próxima etapa para Prejean.

A iconização de Harvey Milk
O filme pode ser do fim de 2008, mas o estouro é de 2009: “Milk”, de Gus Van Sant, foi sucesso de público e crítica. Se o recente êxito de Brokeback Mountain trouxe para o mainstream uma abordagem da vida particular de muitos homossexuais, Milk vai um passo a frente para falar sobre ativismo na década de 70, mostrando para o grande público um pouco da história do movimento gay.

As 8 indicações para o Oscar vieram consagrar o reconhecimento da película, e a conquista dos prêmios de Melhor Ator para Sean Penn e Melhor Roteiro Original para a obra de Dustin Lance Black reforçaram o coro. Os discursos do ator e do roteirista certamente marcaram a história da academia – e, senão, definitivamente a dos LGBTs – falando abertamente sobre preconceito e orgulho gay.

Com a visiblidade da obra, Harvey Milk passou a ser objeto de admiração de grande parte da comunidade gay, seja nos EUA ou no mundo. A imagem do falecido ativista passou, ao longo de 2009, por um processo de iconização, bem exemplificado pela medalha que Obama lhe dedicou e pela instauração do 22 de maio como “Milk Day” na Califórnia.

As vitórias da realeza ativista
Manvendra Singh Gohil pertence a uma dinastia que governa a Índia há quase seis séculos mas que, como algumas monarquias ainda vigentes, como em Espanha, Japão e Inglaterra, é mais simbólica do que política. Tendo se assumido para a família em 2002 e para a imprensa em 2006, foi publicamente rechaçado. Desde então, Manvendra vem desempenhando importante papel como ativista, sendo possivelmente o primeiro príncipe assumidamente homossexual contemporâneo. Sua aparição no programa da Oprah em 2007 recobrou sua popularidade entre os indianos.

A principal reivindicação de Manvendra era a descriminalização da homossexualidade na Índia, medida de quase 150 anos. Com sua efetividade, na metade do ano, 17% da população homossexual masculina do mundo – a indiana – deixou de ser perseguida pelas leis de seu país. Realizada a conquista, ele anunciou, durante a visita ao Brasil, a vontade de adotar um filho o mais breve possível.

Além de protestar, Manvendra também ganhou fama no ano que passou. Em janeiro de 2009, o hindu participou de um reality show da BBC chamado Undercover Princes, em que príncipes orientais iam para o Reino Unido viver como cidadãos comuns e procurar pessoas para namorar. A participação de Manvendra chamou a atenção pela (re)afirmação de sua homossexualidade. Em maio, foi anunciado que será realizado um filme sobre a vida do príncipe (!).

Enquanto isso, no Oriente Médio…
No mapa de direitos LGBTs ao redor do mundo, o Oriente Médio e o norte da África estão marcados em vermelho. É sabido que em lugares como os Emirados Árabes Unidos, a Árabia Saudita, o Iémen, o Irã, o Iraque e o Líbano existem medidas legais contra atos homossexuais – em alguns destes, pena de morte inclusive. Uma famosa ONG de direitos humanos, a Human Rights Watch, anunciou no final do primeiro semestre que só nesse ano centenas de gays foram torturados e assassinados no Iraque, dado este que alarmou a comunidade internacional. Além disso, ao longo de todo o ano pedidos de asilo de homossexuais perseguidos no Oriente Médio chegaram a países europeus, alguns negados e outros concedidos.

O fato que em 2009 mais chamou a atenção dos LGBTs no Oriente Médio se deu, no entanto, no único país da região que é favorável à legislação pró homossexual, além de possuir uma rica subcultura gay: Israel. No primeiro de agosto, um homem entrou armado na Associação de Gays e Lésbicas de Tel Aviv, atirou em todas as direções e fugiu, deixando dois mortos e vários feridos. Protestos em Israel e no mundo converteram a data desde já em tempo para protesto, numa espécie de Stonewall israelense do século XXI.

Yes, he can!
A campanha de Barack Obama para a presidência dos Estados Unidos, ao longo de 2008, foi provavelmente uma das mais marcantes campanhas eleitorais da década. Para gays norteamericanos, o impacto era absorvido também quando o candidato falava que se preocuparia com a questão homossexual caso fosse eleito.

Iniciando-se o mandato, iniciaram-se também as cobranças por parte dos ativistas. Mas a agenda presidencial parecia estar lotada, restando aos homossexuais um desconfortável silêncio. Por volta da metade do ano, enfim se constatou: ele esqueceu de nós. A capa do principal veículo de comunicação LGBT dos Estados Unidos, a revista Advocate, na edição de setembro, ao trocar o “Hope” da campanha original de Obama por um provocador “Nope?” põe em questão o modus operandi do presidente.

Foi nesse segundo semestre que o “silêncio rosa” do governante se quebrou. O Matthew Shepard Act e o discurso do presidente no jantar anual da Human Rights Campaign foram conquistas poderosas para os LGBTs dos Estados Unidos; o primeiro por conta da criminalização da homofobia federalmente e o segundo pela visibilidade que um presidente simpatizante pode dar. Mais do que isso, Obama é um dos políticos mais importantes do mundo, e tê-lo convencido de que os homossexuais devem ter os mesmo direitos que todos é algo significativo. Encerramos 2009 com os LGBTs dos Estados Unidos e do mundo apaixonados pelo presidente – e com a esperança de que nesses próximos anos venha muito mais.

Ativismo 2.0
2009 foi definitivamente o ano do Twitter. A mídia social ganhou uma popularidade só antes testemunhada antes por ferramentas como o Orkut ou Facebook, sendo utilizada ainda por importantes políticos e instituições. O Twitter foi o agitador do conteúdo da web nos últimos meses, estimulando o melhor uso de espaços de divulgação de idéias, como os blogs. A internet, mais especificamente a web 2.0, está na moda.

Os ativistas gays aparentemente souberam utilizar essas ferramentas a seu favor. De um belo vídeo com gays de todo o mundo afirmando estarem orgulhosos de sê-lo a um protesto de escala nacional realizado frente à Casa Branca, a internet serviu para aproximar as pessoas, botar ideias em discussão, agitar eventos. O primeiro ministro britânico Gordon Brown pediu desculpas pelo tratamento homofóbico dado ao matemático Alan Turing durante a década de 1940 por conta de uma petição online divulgada massivamente pelos homos do Reino Unido. Hoje uma grande quantidade de sites e blogs com as mais diferentes temáticas relacionadas a LGBTs está no ar, o que é extremamente significativo no sentido de criar uma base de apoio para quem precisa e promover o diálogo dentro e fora da dita “comunidade gay”.

O casamento gay na América Latina
Com o perdão do trocadilho, no último bimestre do ano assistimos a uma verdadeira novela mexicana gay na América Latina. No final de novembro foi anunciado que Alejandro Freyre, 39 anos, e Jose Maria Di Bello, 41, realizariam o primeiro casamento entre duas pessoas no mesmo sexo da América Latina, em Buenos Aires, por conta da aprovação da juíza Gabriela Seijas. O evento foi marcado para o primeiro de dezembro, visto que os noivos são soropositivos e queriam que a data coincidisse com o Dia Mundial da Luta Contra a AIDS. Um dia antes da consumação, porém, a juíza Marta Gómez Alsina operou uma manobra legal que garantiu o cancelamento do matrimônio. A notícia foi recebida com desgosto pelo casal, que, com postura ativista, deu a impressão de que o assunto ainda estava inacabado.

Enquanto isso, ao norte, no dia 21 de dezembro uma votação na asssembleia local da Cidade do México relativa ao casamento entre pessoas do mesmo sexo registrou 39 votos a favor e 20 contra. A adoção por casais homossexuais também foi aprovada no mesmo dia, concedendo aos gays da capital mexicana uma boa dose de direitos civis de uma só vez – a começar em março de 2010. Todos os olhos se voltaram para o México, esquecendo um pouco da derrota em Buenos Aires três semanas antes.

Mas Alejandro e Jose Maria, o casal de argentinos, não tinham desistido. Viajando para a província da Terra do Fogo, conquistaram o apoio da governadora para realizar o casamento, que se consumou no dia 28 através de um decreto da governante. Sete dias depois da primeira legislação pró casamento gay ser aprovada na América Latina, o primeiro casório efetivo ocorre, em um país totalmente distinto. Com os acontecimentos de 2009, os direitos LGBTs em contexto latinoamericanos parecem ter ganho uma base para continuar avançando.

40 anos de Stonewall
Foi em 2009 que o momento considerado marco do ativismo gay completou 40 anos: a rebelião de Stonewall foi relembrada, rediscutida e questionada por LGBTs de todo o mundo. Exposições, coquetéis, longos discursos em paradas. Se hoje não é mais reconhecida como “mito de criação” do ativismo gay, tal como era há algum tempo, Stonewall no mínimo ganha grande importância numa história da luta homossexual no século XX.

Uganda chama a atenção do mundo
No dia 13 de Outubro, um projeto de lei foi apresentado no parlamento de Uganda propondo a criminalização e penalização (de morte) da homossexualidade. O país já não é favorável às práticas homoeróticas, não efetivando punições no entanto por conta da necessidade de provas para a acusação – a nova lei facilitaria o processo, além de aumentar as penas. Governantes da Inglaterra, Canadá, França e Estados Unidos se manifestaram criticando o país africano, numa polêmica que se estende até o presente momento. Aguardamos pelo desfecho da situação, mas comemoramos desde já o amplo apoio recebido de todos os lados.

Lideranças assumidas
Por mais que o feminismo já não seja novidade, e que toda a conversa de que “a mulher está entrando no mercado de trabalho” também não, é só recentemente que temos visto mulheres assumirem importantes cargos políticos com mais frequência – as vizinhas Kirchner e Bachelet estão aí para servir de exemplo. Se cairmos na tentação de realizar um paralelo com a participação política homossexual, ainda temos uns bons anos até presidentes e ministros assumidos não serem mais motivo de estranheza. Até lá, cada caso que surge é uma novidade, mais um passo em direção a um reconhecimento respeitoso.


Na Alemanha, o vice chanceler eleito foi Guido Westerwelle, em coligação com o partido de Angela Merkel. Westerwelle é publicamente conhecido por ser homossexual, seja por sua participação em uma edição do Big Brother ou pelas constantes aparições com seu parceiro, Michael Mronz. A cidade de Houston, quarta maior metrópole norteamericana e maior cidade do homofóbico estado do Texas, elegeu uma prefeita assumidamente homossexual. Annise Parker, que se candidatou de forma independente, sofreu com uma campanha bastante homofóbica por parte da oposição, mas ganhou o apoio da comunidade gay dos Estados Unidos. Sua vitória foi bastante significativa para o país.

Vereadores, deputados e governantes menores à parte, 2009 foi o ano em que, pela primeira vez, o cargo de chefe de estado de um país foi ocupado por uma pessoa assumidamente homossexual. Depois de uma crise no governo islandês no ano de 2008, por conta da instabilidade da economia mundial na época, o executivo passou a ser liderado, a partir de 1º de fevereiro, pela ministra Johanna Sigurdardottir, que é casada com a jornalista Jonina Leosdottir.

Olhando pra frente
Mesmo um ativista mais rabugento há de convir que 2009 foi bom ano no quesito direitos. E ao passo que a tendência é que 2010 seja fantástico, com casamentos na Cidade do México, Áustria, Portugal e sabe-se lá onde mais, é bom lembrar que direito não é equivalente a respeito. Conforme os Estados reconhecem a homoafetividade e recriminam a homofobia, o preconceito encontra formas mais sutis de manifestação. Me parece que os próximos capítulos, além de ótimas comemorações, trarão o desafio de lidar com a hipocrisia do politicamente correto.


O que o Uruguai tem que nós não temos? Parte I

24 de novembro de 2009

Os ensaios de avanço na legislação relativa à homossexualidade no Uruguai têm chamado a atenção do nosso leitor Paulo Simas (que já apareceu por aqui com um texto excelente intitulado “Heternormatividade e Subculturação”). Intrigado com a antipatia do Estado brasileiro para com os LGBTs, ele vem há algum tempo realizando uma pequena pesquisa para responder essa pergunta. Porque nossos vizinhos estão melhor que nós nesse aspecto? Como a situação – lá e aqui – chegou a esse ponto? Afinal, que raios o Uruguai tem que nós não temos?

Aparentemente, a pesquisa rendeu muitos e bons frutos: um grande texto, dividido em duas partes, que a equipe do Homomento ganhou de presente para postagem (cabe dizer que caiu como uma luva na correria do fim de semestre – essa foi a primeira semana que não postamos Destaque!). Publicamos hoje a primeira parte, deixando a continuação para a semana que vem. Boa leitura!

O que o Uruguai tem que nós não temos? – parte 1
por Paulo Simas

Em outubro, o Senado do Uruguai aprovou uma lei que permite a mudança de sexo e de nome. Ela já havia passado pela Câmara dos Deputados e aguarda a sanção presidencial para começar a valer. O presidente Tabaré Vásquez é católico, mas nada indica que vá vetar a medida, pois seu governo está mudando a legislação do país para garantir os direitos da população LGBT. Primeiro foi a união civil, em 2008, depois o acesso às forças armadas, em maio, e, em setembro, a adoção de crianças por casais gays.

Na realidade, não está claro se a nova lei de adoção realmente permite que casais formados por pessoas do mesmo sexo obtenham a guarda conjunta de crianças. A parlamentar autora da lei diz que não, mas o governo acredita que sim. De qualquer modo, os direitos assegurados até aqui (união civil e entrada nas forças armadas) já colocam o Uruguai na vanguarda da América Latina. Além desse pequeno país de quase 3,4 milhões de habitantes, apenas Equador, Colômbia e regiões de Argentina e México dão algum tipo de reconhecimento legal às famílias formadas por pessoas do mesmo sexo.

No Brasil, nenhuma lei federal garante os direitos conjugais dos cidadãos não heterossexuais. O assunto mofa desde 1995 no Congresso Nacional e, agora, depende da boa vontade do Supremo Tribunal Federal, que promete um parecer para breve.

A diferença entre nós e os uruguaios é escandalosa, mas não se dá por acaso. Nosso vizinho está a nossa frente numa questão crucial para a liberdade e os direitos humanos: a laicidade do Estado. O governo e os tribunais daquele país são mais independentes da autoridade religiosa do que o brasileiro. Isso porque os políticos e funcionários públicos sabem que o que os legitima é a soberania popular, não a fé. Dessa forma, não atuam de acordo com as suas crenças pessoais, mas conforme o compromisso de trabalhar por todos os cidadãos uruguaios.

Trata-se de um conceito um tanto abstrato, mas que não é difícil de ser verificado na prática. A chamada laicização do Uruguai começou ainda em 1861, quando a Igreja Católica deixou de administrar os cemitérios. Continuou com o matrimônio civil, em 1865, e ganhou força no início do século XX, com o governo de José Batlle y Ordóñez. Ele, como boa parte da elite uruguaia, era influenciado pelas idéias liberais francesas e acreditava que a separação entre o político e o religioso era fundamental para a modernização do país. Assim, em 1907, ele comprou a briga contra os católicos e criou a primeira lei de divórcio do mundo. A posterior retirada dos crucifixos dos hospitais e prédios públicos e a abolição dos cultos em escolas públicas anteciparam o rompimento oficial com a Igreja, consagrado na Constituição de 1917.

A laicização não é exclusividade do Uruguai e há países que fizeram isso muito antes. No Brasil, por exemplo, ela estava inscrita já na Carta Magna de 1891. No entanto, o Uruguai passou por um processo muito mais radical, a ponto de o país ter adotado um novo calendário a partir de 1919, trocando os feriados religiosos por comemorações cívicas. Dessa forma, o Natal virou o Dia da Família e a Páscoa foi substituída pelo Dia do Turismo, por exemplo. Além disso, cidades com nomes de santos foram renomeadas, caso de Santa Isabel, que virou Paso de los Toros. Tudo para sinalizar à população que o país estava de fato se transformando.

Por aqui, tem-se a impressão de que a laicidade só existe no papel. Juízes citam passagens bíblicas em suas sentenças, repartições públicas ostentam crucifixos, políticos dizem que a Bíblia está acima da Constituição. Nossa Carta Magna, aliás, começa dizendo-se promulgada “sob a proteção de Deus”. É como se, no Brasil, o poder popular não bastasse para legitimar autoridades e políticas públicas. Nada contra a crença pessoal em determinada religião, pois a liberdade religiosa é tão importante para a democracia quanto a laicidade. O problema é quando o poder é exercido em nome e em benefício dessas seitas.

A nossa laicidade irregular é especialmente grave porque impede a garantia de direitos de uma parcela da população. Ela é o principal entrave, por exemplo, para a aprovação da união civil entre pessoas do mesmo sexo. O sociólogo Luiz Mello, que estudou as discussões na Câmara dos Deputados sobre o projeto proposto por Marta Suplicy em 1995, concluiu que a visão cristã de mundo impede que os deputados votem a favor do projeto. Afinal, não há argumento jurídico que justifique a criação de dois grupos distintos: os que podem e os que não podem constituir família. A única justificativa possível para a discriminação é de ordem moral. Ao adotá-la, os deputados levam em consideração não o seu dever com a sociedade, mas o compromisso com suas crenças pessoais. Colocam, assim, valores individuais acima dos interesses públicos.

Num Estado laico ideal, isso jamais poderia acontecer. É claro que ele não existe, pois a laicidade é um caminho a ser seguido, não um modelo fechado. Em países onde o processo está mais avançado, no entanto, é possível aprovar temas considerados tabus pelos religiosos. Foi por isso que o Congresso uruguaio aprovou as medidas pró-LGBT, apesar da forte pressão da Igreja Católica e da própria religiosidade do presidente. Apesar de católico, Tabaré Vázquez colocou seu governo e seu partido para trabalharem a favor dos projetos de interesse de LGBT.

Um parêntese: no caso do aborto, o presidente uruguaio fez o contrário e colocou sua fé na frente. O projeto passou pelo Congresso, apoiado inclusive pelo partido governista, mas foi vetado pelo presidente. Se fosse no Brasil, ficaria por isso mesmo; como o Uruguai tem um Estado mais laico que o nosso, o veto se transformou numa crise política. Seu partido, a Frente Ampla, o isolou e ameaçou expulsá-lo, além de retirar o apoio ao governo. O golpe mais duro veio logo depois: seu candidato à sucessão foi preterido na escolha interna e ele teve que engolir um nome considerado “mais à esquerda”.

Até aqui, tratei de um aspecto estrutural do Estado uruguaio, que explica por que a oposição dos religiosos aos projetos pró-LGBT não teve efeito, ao contrário do que acontece no Brasil. Mas a laicidade não explica tudo: por que, afinal, essas medidas foram aprovadas só agora? Minha tese é de que o governo que promoveu essas mudanças precisou do apoio da parcela progressista do eleitorado – o que não acontecia nos governos anteriores e o que não ocorre no Brasil. No próximo domingo, essa estratégia vai ser testada no segundo turno da eleição presidencial. Segundo as pesquisas, parece que ela deu certo: o candidato governista está 10 pontos a frente do rival. Mas tratarei disso em detalhes no próximo texto.

Fontes:

O laicismo no Uruguai – Kátia Adriano Matias da Silva e Sílvia Helena de Mendonça Fontenele. Revista Ameríndia: http://www.amerindia.ufc.br/articulos/pdf4/katia.pdf
Em defesa das liberdades laicas – Roberto Arriada Lorea (organização). Editora Livraria do Advogado
Novas famílias: conjugalidade homossexual no Brasil contemporâneo – Luiz Mello. Editora Garamond


Retrospectiva de Agosto

1 de setembro de 2009

Agosto foi um mês marcado pela polêmica do “tratamento” de homossexuais. No dia 31 de julho, a psicóloga Rozângela Justino recebeu censura pública do CFP. Em entrevista à Veja, ela se disse amordaçada e chamou os homossexuais de nazistas, o que revoltou a comunidade LGBT e provocou uma carta irada do jornalista e ex-BBB Jean Wyllys, homossexual assumido. Em resposta a isso, a bancada evangélica do Congresso definiu um relator para o projeto de lei que permite essa prática, atualmente proibida pelo CFP. Nos Estados Unidos, esse assunto também foi destaque ao longo do mês, com a negativa de que homossexuais possam ser “curados” e, mais recentemente, com a divulgação de resultados de um tratamento que supostamente “reverteu” a homossexualidade de alguns pacientes.

Opressão disfarçada de cuidado: reprimir a orientação sexual não é saudável!

Opressão disfarçada de cuidado: reprimir a orientação sexual não é saudável!

No campo dos direitos, o principal assunto de agosto certamente foi a união estável entre homossexuais. Duas ações estão no STF defendendo o direito ao reconhecimento dessas uniões. Merece destaque a manifestação da Advocacia Geral da União em relação à ação proposta em julho pela então Procuradora-Geral da República Deborah Duprat. No parecer, a Advocacia Geral da União recomenda que o STF determine o reconhecimento das uniões homoafetivas pelo Estado brasileiro. A via judicial parece a melhor esperança: na Câmara dos Deputados, um projeto que previa uma redação mais inclusiva para a definição de união estável foi modificado para conter somente a “família natural, composta por homem e mulher”.

O mês começou pesado: no dia primeiro de agosto, um centro de convivência para jovens homossexuais em Tel Aviv foi alvo de um ataque em que duas pessoas foram mortas. No Iraque, a situação também não está boa para os gays: um relatório divulgado pela Human Rights Watch no último dia de julho indica que a violência contra LGBTs aumentou no ano de 2009, e pelo menos 82 pessoas foram assassinadas esse ano no país por razões homofóbicas (algumas delas sofrendo tortura). Isso não parece suficiente para que a Inglaterra pare de deportar homossexuais que se refugiam em seu território.

No Iraque, uma fatwa (pronunciamento legal emitido por autoridade religiosa) diz que homossexuais devem ser mortos da "pior forma possível"

No Iraque, uma fatwa (pronunciamento legal-religioso) diz que homossexuais devem ser mortos da "pior forma possível"

Com a morte de Ted Kennedy, o movimento homossexual perdeu um grande aliado na luta pelos direitos dos LGBT no Congresso norte-americano. Em outros países, alguns direitos foram conquistados: na Alemanha, uma lésbica pôde adotar o filho de sua companheira, abrindo espaço para que a proibição de que isso acontecesse fosse considerada inconstitucional. No Uruguai (onde a união civil é permitida desde 2008), por sua vez, o avanço se deu no Parlamento: foram os deputados que aprovaram a adoção por casais homossexuais. E isso que as eleições de lá são em outubro! Não quero ser pessimista, mas no Brasil uma medida assim seria considerada polêmica demais para ser sequer discutida em ano eleitoral…

Já no Chile, o Movimento de Integração e Libertação Homossexual (Movilh) lançou uma campanha para mudar uma lei que só permite sexo com pessoa do mesmo sexo se ambos tiverem mais de 18 anos. Entre os heterossexuais, a idade de consentimento é de 14 anos, enquanto homossexuais podem ser presos por até três anos se tiverem relações sexuais com um menor! Seria cômico se não fosse trágico, e o mês de agosto rendeu outras manchetes nessa linha para os LGBT. O governo da Malásia, por exemplo, incluiu uma sugestão curiosa entre as medidas de precaução contra a gripe A: evitar sexo homossexual, pois essa prática tornaria o corpo mais suscetível ao vírus H1N1. Nos EUA, um religioso defende que a aceitação de pastores gays não celibatários pela Igreja Luterana causou um tornado.

Brüno: humor busca repercussão, não consenso

Brüno: humor busca repercussão, não consenso

Falando em piada, não podemos negar: o filme Brüno, de Sacha Baron Cohen, é o destaque absoluto no que diz respeito à cultura LGBT. O Homomento fez duas críticas do filme: Rodrigo Maciel discordou dos excessos cometidos pelo ator e diretor do filme, enquanto Carolina Maia acredita que o humor escrachado de Cohen denuncia preconceitos. Essa discordância ilustra bem as ideias de Pedro Cassel, que defendeu ao longo do mês (num texto em três partes: 1, 2 e 3, com um post especial do leitor Paulo Simas) que a “cultura gay monolítica” está em crise: LGBTs não são uma população coesa e homogênea, e cada um dos indivíduos que a compõem têm suas próprias opiniões, vivências e demandas particulares.