Eles contra elas

4 de janeiro de 2011

Há mais de mês aconteceu o Dia Internacional da Não Violência Contra a Mulher. Aí a Lola do Escreva Lola Escreva, um dos meus blogs favoritos, fez um post especial para os homens. Com o título “Homem, faça a sua parte”, ela sugere algumas coisas que os homens poderiam fazer para participar da luta contra o machismo.

A blogueira explica que logicamente não são todos os homens que estupram e agridem mulheres, mas que essas agressões são feitas por homens. E que esse assunto, o da violência contra a mulher, deveria dizer respeito a todos, independente do sexo. Não precisa ser agressor nem agredido pra se envolver nessa luta e querer que a situação acabe, logo, homens que não agrediram e mulheres que não foram agredidas podem e devem participar.

Aí vêm algumas dicas de coisas que podem ser feitas por homens que querem participar desse conjunto de práticas que engloba a luta feminista.

Permita-me algumas sugestões: se você tiver um blog, escreva sobre isso. Escreva sobre quando você começou a autoanalisar o seu sentimento de posse. Escreva sobre o que viu de desigual no relacionamento entre os seus pais. Escreva sobre o ciúme doentio que você sentiu aquela vez da sua namorada. Escreva quando descobriu que as mulheres merecem respeito.

Copiado esse trecho, preciso fazer alguns comentários.

Pra começar, quero questionar essa ideia de que os homens “também” podem se interessar pelo feminismo. Tenho certeza que a Lola sabe que ser mulher não significa ter interesse automático por aquele conjunto de coisas que se entende como “emancipação feminina”, mas a premissa do texto não deixa isso claro. A leitura me fez remexer na cadeira porque parecia que bom, nem precisamos falar sobre como o feminismo é caro às mulheres, agora vamos aos homens.

O machismo é um sistema simbólico que não foi deliberadamente criado. Não houve um momento em que homens se opuseram a mulheres e submeteram elas, contra a sua vontade, e desde então elas vêm umas sendo submissas e outras reparando o quanto essa situação é horrorosa. Não é dualista, mas totalmente complexo e enraizado culturalmente. O feminismo, no entanto, se organizou em torno de mulheres, e vem sendo caracterizado como “luta feminina”. Se cria aí essa visão polarizada que é extremamente problemática.

Quando um marido oprime a esposa de alguma forma não estamos falando de uma situação em que um homem dominador e possessivo violentou uma esposa submissa que, se pudesse, estaria numa relação diferenciada. A relação já se estruturou assim desde o começo porque os dois quiseram. Tanto o homem escolheu uma parceira-objeto quanto a mulher procurou um parceiro que a objetificasse, e essas escolhas foram condicionadas e impostas a eles desde que nasceram.

A sugestão de Lola é que homens esclarecidos falem sobre o momento da quebra, em que repararam que não é legal ter o sentimento de posse, desrespeitar as mulheres, sentir ciúme doentio e outras coisas mais. Que eles colaborem com relatos que possam ser lidos por machos chauvinistas, que quem sabe possam se sensibilizar.

Mas acontece que esses homens sensíveis de Lola vivem em um mundo em que a grande maioria das mulheres busca por objetificação, luta por submissão e reafirma diferenças categóricas entre os sexos que acabam sempre diminuindo a mulher. Pra dar um exemplo: há alguns meses falei sobre um livro chamado “Cuidado! Seu príncipe pode ser uma Cinderela” que é um manual para a mulher identificar se o seu marido é um gay enrustido que quer manter as aparências. Os parâmetros? Se ele for muito carinhoso, se vestir bem, tiver uma boa relação com a própria mãe, ele é gay e você está sendo enganada. O livro diz à mulher o que NÃO se esperar de uma relação heterossexual, ou seja, carinho, companheirismo, etc. E, que surpresa: foi escrito por duas MULHERES, visando “ajudar” MULHERES.

Esses dias li um tweet dizendo que acusar as mulheres de serem perpetuadoras da pior espécie de machismo seria a configuração de um neomachismo, um machismo dois ponto zero. Realmente é de uma pobreza enorme desculpabilizar homens, mais ou menos como aquela premissa escrota de que “são os negros que são racistas consigo e se excluem”. Mas não é dentro desse esquema argumentativo que quero me inserir.

Quero dizer mais ou menos o que falei no meu post anterior, só que trazendo isso pro feminismo, porque é importante. Não se trata de vítima contra opressor, mocinho contra bandido. Não são mulheres (e homens esclarecidos) lutando contra homens machistas. São pessoas que pensam uma coisa se opondo a pessoas que pensam outra coisa. É muito ingênuo endereçar “também” aos homens os objetivos feministas, como se qualquer mulher entendesse o que são estes e se interessasse por eles. Qualquer mulher está apta a perceber que existe essa violência específica, mas não a perceber que as origens dessa violência são simbólicas e perpetuadas em todos os cantos diariamente. E é essa percepção, na minha opinião, que difere uma mulher feminista de uma mulher que se diz feminista.

Uma coisa que me chateou bastante em outro texto da Lola, e eu até reclamei pra ela no twitter sem obter resposta, foi ela dizer que tanto mulheres quanto homens podem sofrer violência sexual, mas apenas homens a cometem. Isso não é verdade: mulheres podem abusar de mulheres, e de homens também. E é um absurdo, uma falta de sensibilidade dizer o contrário. Eu não sei em que momento essa obviedade escapou da Lola, mas acho que foi quando ela começou a colocar as mulheres no pedestal de vítimas.

Esses dias vinha relendo os textos da época em que o Homomento não era um blog semimorto e bissexto e percebi que a grande maioria das nossas críticas foi tecida em relação à militância/mídia/comunidade gay. Nunca nos interessou pressupor um todo LGBT organizado para, em cima disso, partir para as críticas do “mundo hetero”. Reparamos que muitas vezes práticas que se pretendem inclusivas entre os LGBTs são normativas, machistas, racistas e escondem uma profunda decepção interna por não serem heterossexuais. Não estou falando da “homofobia internalizada”, esse que se tornou um recurso ativista gay para falar de qualquer homossexual que não se comporte como a militância pede, mas de práticas celebrativas e enquadradoras como o já analisado Mister Gay Brasil.

Adoraria pensar que lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros partilham todos do mesmo desejo emancipatório, e que se assumir significa ser fazer algo de diferente e efetivo para os gays, independente do contexto e da forma como vai ser administrada essa homossexualidade escancarada. Adoraria escrever longas cartas para meus amigos heteros “esclarecidos”, incitando-os a participarem da luta pelos gays. Mas não divido o mundo em preto e branco e sei que o buraco é sempre, sempre mais embaixo.


Eles contra nós contra eles

19 de outubro de 2010

Uma coisa é fazer uso de um discurso sofista e conservador, dizendo que “não se pode ser preconceituoso com o preconceituoso”. Outra coisa é se propor um tratamento crítico das discriminações, sem categorizá-las identificando bons e maus de forma maniqueísta.

Os evangélicos, ou crentes como alguns preferem ser chamados, formam um grupo que tem sua própria vivência com a discriminação. Nossa cultura católica não gosta desses filhos rebeldes e taxa-os de fanáticos, ignorantes, etc. O “eu” brasileiro é homem, branco, católico e hetero, e pensa que qualquer sujeito que não se encaixa nesses padrões tem de estar à margem.

O que acontece é que as essas “minorias” exclusas, na busca por inclusão, não quebram o padrão masculino, branco, católico e hetero: apenas transgridem o que lhe diz respeito e continuam operando na lógica que lhes esmagou. Temos, assim, feministas brancas, católicas e hetero excluindo lésbicas; homens negros, católicos e heteros menosprezando mulheres e homossexuais; homens gays, brancos e católicos discriminando negros e mulheres e assim vai. Assim, embora partilhem da experiência de ser o “outro” social, todos esses grupos não-masculinos, não-brancos, não-católicos e/ou não-heterossexuais, dentro das infinitas combinações que podemos ter aí, brigam entre si por preciosismos e casualidades, sem a percepção de que continuam todos subjugados e diminuídos no meio em que se encontram. No caso dos gays versus evangélicos isso é muito mais acentuado; se nem movimentos sociais conseguem se conciliar, que dirá um religioso e um social?

Além disso, temos um fator importantíssimo que é o teor da doutrina evangélica. Num tempo em que o politicamente correto predomina e ser preconceituoso é feio, cafona, fora de moda, muitos neopentecostalistas têm uma postura de clara discordância em relação às práticas homossexuais. A polarização entre os dois grupos vem ficando ainda mais nítida com os debates no Congresso, especialmente em torno do PLC 122/06, que se na opinião de LGBTs é importante para criminalizar a homofobia, na opinião de muitos religiosos é absurda por vetar elementos constituintes do seu código de crenças. Essa questão separaria definitavamente os interesses de ambas as minorias e faria das lutas de ambos coisas totalmente diferenciadas, certo? Errado.

Acontece que a voz evangélica no congresso, ao tentar barrar medidas pró homossexuais, além de evitar o progresso dos direitos humanos no Brasil comete um equívoco ao fazer o interesse religioso pesar mais que o político na balança das prioridades. Quero dizer que esses evangélicos não podem esquecer que operam sob uma democracia liberal, e que lutar contra qualquer tipo de liberdade – religiosa inclusive, como buscam fazer com os cultos afrobrasileiros – significa lutar contra a própria, de certa forma.

É claro que é uma coisa muito séria dizer que os evangélicos têm de deixar a política pesar mais que a religião na balança de prioridades. Sabemos, afinal, que as religiões não funcionam dessa forma em sua episteme. Mas historicamente tem sido assim; as instituições religiosas vão cedendo às transformações sociais e suas doutrinas são reinterpretadas. Sabemos, por exemplo, que esses grupos evangélicos – e mesmo os católicos tradicionais – são essencialmente contra o divórcio, mas se dentro das igrejas pode-se falar bastante disso, fazer do casamento novamente um laço vitalício não está em questão em âmbito sociopolítico. Ninguém foi preso por discordar do divórcio, assim como ninguém seria preso por discordar da homossexualidade; as leis apenas buscam gantir que o direito de se divorciar e de ter relações homossexuais não fossem negados aos integrantes da sociedade em questão. E que, no caso dos homossexuais, não houvesse possibilidade de alguém difamá-los, tratá-los como doentes e promover um discurso odioso contra eles na esfera social.

Tomo como equívoco sobrepor interesse religioso a político porque sabemos que os evangélicos formem paradoxalmente um grupo político com interesses próprios no atual Estado brasileiro e ao mesmo tempo não formam grupo nenhum, uma vez que estão espalhados da esquerda à direita, com direito a boas doses de centro. Então ao mesmo tempo que alguns dizem que se deve reconhecer que faz parte do processo democrático se formar uma junta evangélica que queira lutar por seus interesses, o argumento é falho porque esses senhores reconhecem a laicidade de seu ofício e se sujeitam a jogos partidaristas que no fim das contas pouco dizem respeito a princípios bíblicos.

Fui longe, dei um nó e agora volto pra enfim ir direto ao ponto: os interesses dos homossexuais e dos evangélicos são os mesmos; a garantia do reconhecimento de sua igualdade e da manutenção de suas liberdades dentro do nosso esquema civilizacional que é a democracia liberal. O que acontece é que determinada parcela do grupo evangélico não pensa dessa maneira, querendo garantir sua primazia de seu recém conquistado lugar enquanto homens, evangélicos, brancos e heterossexuais, lutando contra os direitos de mulheres, não-evangélicos, não-brancos e não-heterossexuais. Uma prática realmente nada nobre, mas que não determina que os crentes sejam cruéis, preconceituosos ou maus.

O que luto contra é uma perspectiva dualista, de que os evangélicos são os piores inimigos dos gays. Não o são, e pensar assim é uma coisa muito séria, muito feia. Evangélicos não são animais estúpidos e fanáticos. Talvez alguns sejam, mas alguns LGBTs também o são. Em verdade, é bem mais possível que um evangélico trate bem a uma lésbica do que uma pessoa que declaradamente “adora gays”, porque não só esse discurso de “adorar gays” é totalmente homofóbico como os mesmos evangélicos que pregam a homossexualidade como antinatural também pregam a solidariedade e o amor. Deve se considerar ainda que muitos desses crentes, por mais que na igreja sejam coniventes com certos tipos de discurso, não necessariamente compactuam com eles na prática e nem mesmo percebem isso. Não há que se rotular todas essas pessoas e presumir que elas pensam e vivem a religiosidade da mesma maneira.

Sou contra o preconceito contra evangélicos porque sou contra qualquer tipo de preconceito. É problemático assumir uma premissa como “aquilo no que eles acreditam é errado” porque é circular. Enquanto um diz que é errado ser algo, outro responde que é errado acreditar em algo. Cada surdo gritando sua verdade para fazer-se ouvir mais alto. Lutar pela garantia dos direitos humanos é lutar pela liberdade de opinião, e como venho enfaticamente falando desde o início do texto, isso é algo prezado por ambos os grupos. É claro que a linha entre a opinião e a difamação é tênue, coisa que todo esse debate em torno da lei da homofobia deixou bastante claro, mas antagonizar não é solução.

Atribuir a evangélicos o papel de nossos maiores inimigos é análogo a tapar o sol com a peneira. É mais confortável e mais fácil, afinal, apontar como opositor um pequeno grupo que declaradamente não gosta de homossexuais do que a grande maioria (inclusive a própria “comunidade gay”), cujo preconceito ganhou tanta malandragem que sabe até mesmo se disfarçar de progressista e pró direitos humanos. Não digo que não se deva brigar com a empreitada esquizofrênica dessa bancada no congresso e nem que não seja nítido o quanto pastores como Silas Malafaya promovem o preconceito. Apenas que não está nessas atitudes a origem da repressão a LGBTs, e que lutar SÓ contra elas, ver nelas o grande X da questão, é ilusório. E é, além de tudo isso, reafirmar um preconceito de origem católica. E entrar de vez na corrida maluca em que as minorias, preocupadas demais com a sua fatia do bolo, não se importam com todas as outras que também querem comer.


Destaque da Semana: Casamento gay em Portugal

10 de janeiro de 2010

Se levarmos em consideração que até 1982 a homossexualidade era considerada formalmente como crime em terras lusas, não nos restam dúvidas de que a comemoração em torno da aprovação da proposta de lei favorável ao casamento entre pessoas do mesmo sexo é mais do que merecida.

Nessa sexta-feira (08 de janeiro de 2010), a Assembléia da República Portuguesa aprovou a lei que colocaria o país junto dos 5 demais países europeus que também permitem o casamento civil entre gays. Ao que tudo indica, agora além da Holanda, Suécia, Noruega, Bélgica e Espanha teremos Portugal, consolidando uma Península Ibérica mais igualitária, ao menos no discurso.

Acontece que, o primeiro passo em direção da obtenção desse direito foi dado, mas mesmo com a aprovação defendida pelo primeiro-ministro José Socrátes, ainda se faz necessária a confirmação do presidente da república, Aníbal Cavaco da Silva. O presidente tem poder de veto sobre a lei, que nesse caso voltaria para votação na Assembléia. Caso contrário, se aprovada por Cavaco da Silva, os primeiros casamentos lusitanos começariam já em abril de 2010.

Presidente português Aníbal Cavaco da Silva e o primeiro-ministro José Sócrates

Embora Cavaco da Silva seja o primeiro presidente de direita eleito após 1974 (fim da ditadura Salazarista) poucos acreditam que ele vá vetar a lei, tendo em vista a ampla base favorável a mesma na própria Assembléia portuguesa.

A euforia em torno dessa primeira fase justifica-se não só na improvável recusa do presidente, como no nó desfeito na garganta de muitos portugueses que viram ainda em 2008 a possibilidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo se esfacelar ao ser, como eles próprios chamam, “chumbada” ainda na Assembléia.

Portugal, país em que maioria da população é católica e que no ano passado adotou medida controversa a respeito da doação de sangue, ao proibir homens gays alegando que estes constituem um “grupo de risco”, não foi preenchido unicamente de comemorações e festas com a aprovação do casamento. Além de protestos por parte da população, a própria bancada política encontra-se em constante conflito que parece agravado pela votação da lei.

A base de apoio é formada pela esquerda e pelos verdes, que juntos compõe a maioria das cadeiras. O restante divide-se entre aqueles que defendem questões morais e os que julgam essa como sendo uma questão de menor relevância frente aos problemas econômicos enfrentados pelo país, como a alta taxa de desemprego. A própria imprensa portuguesa grifou a postura adotada pelos comunistas como discreta e omissa:

Comunistas muito apagados do debate

Já o PCP, bastante calado durante o debate, declarou que os comunistas vão abster-se na votação dos projectos do Bloco de Esquerda e dos Verdes, uma vez que «tal como na anterior legislatura» o PCP «continua a considerar que esta é um matéria mais complexa cujo debate é necessário prosseguir», disse o deputado João Oliveira.

Vale lembrar que a a lei não contempla a adoção por casais homossexuais, que parece ser a próxima pauta dos ativistas uma vez que o casamento se concretize como já é esperado. Questionado a respeito dessa questão, o primeiro-ministro Sócrates, retrocedeu em seu discurso igualitário, alegando: “No casamento trata-se da liberdade individual. Na adopção é diferente, há o interesse de terceiros. O mandato do PS é com o casamento, não com a adopção.”

(obs.: A decisão do presidente não tem uma data exata, aguardaremos torcendo para que nas próximas semanas uma resposta positiva seja dada.)


Retrospectiva LGBT de 2009

4 de janeiro de 2010

Escrever retrospectivas já é, por si só, uma tarefa ingrata. A pretensão de abranger os mais importantes fatos relacionados a homossexuais ao redor do mundo durante os 365 dias que compuseram 2009 parece então praticamente inalcançável; quis por isso apenas relembrar alguns acontecimentos, com ajuda de arquivos de sites de notícias gays e da própria Wikipedia. Encarem essa postagem não com a imponência da palavra retrospectiva, mas como um refresco na memória para alguns pontos que chamaram a atenção durante o ano. É bom ressaltar que, no intento de fazer também uma retrospectiva local, deixei o Brasil de fora. Comecemos então?

O avanço dos direitos coloridos
O ano de 2009 está inserido no processo de avanço dos direitos homoafetivos que a comunidade internacional vem assistindo desde que a Holanda aprovou, pioneiramente, o casamento igualitário no ano de 2001. Já a partir de 1o de janeiro de 2009, pessoas do mesmo sexo poderiam começar a se casar na Noruega. Em fevereiro, é vez da Hungria e do Hawaii concederem aos casais gays todos os benefícios da união civil, exceto a adoção – benefício esse que, na Dinamarca, é concedido em março. A Suécia legaliza o casamento em abril, com efetividade marcada o mês seguinte. No segundo semestre, os avanços esfriam mas a discussão não pára. O Uruguai foi grande destaque na América Latina, aprovando leis de adoção e casamento que apenas aguardam sanção.

No final de outubro, o Matthew Shepard Act foi aprovado nos EUA e a homofobia foi criminalizada a nível federal. Por sinal, apesar de dependerem da vontade de 50 estados, um a um, os Estados Unidos testemunharam grande avanço LGBT em 2009, presenciando inclusive um boom casamenteiro com as conquistas em Colorado, Wisconsin, Nevada, Vermont, Iowa e até Washington DC, mesmo apesar da sofrida derrota em Maine. Na Áustria, em dezembro, a união civil entre homossexuais foi aprovada, para entrar em vigor no primeiro dia de 2010 e começarmos o ano já com boas notícias. Em Portugal, a eleição de José Sócrates para primeiro ministro acompanha o compromisso do seu partido de aprovar o matrimônio, o que em dezembro já estava em intensa discussão, com direito a plebescito: provavelmente em 2010 nossos colegas lusófonos já poderão juntar os trapinhos com pessoas do mesmo sexo.

Gays no exército?!
A questão militar foi tema para discussão: em março, Argentina e Filipinas eliminaram medidas proibitivas para a presença assumidamente homossexual nos exércitos. Dois meses depois, o Uruguai entra no coro. Nos Estados Unidos, no entanto, a política do “Don’t Ask, Don’t Tell” (algo como “não pergunte, não fale”) segue nos exércitos, e homens de carreira sólida são demitidos por terem sua intimidade trazida à tona. Em julho o tema foi amplamente debatido quando o soldado inglês James Wharton saiu na capa da publicação oficial do Exército Britânico, a revista Soldier, em que fala sobre sua homossexualidade. Wharton tem tomado, desde então, uma postura ativista, participando de vários eventos LGBTs. Cabe lembrar que o Reino Unido baniu essas medidas proibitivas há nove anos, celebrando desde então a diversidade dentro das Forças Armadas.

Califórnia, a Miss Antipatia
Em fins de 2008, a Proposition 8 significou um retrocesso para a comunidade LGBT norteamericana, tirando-lhes o recém concedido direito de se casar. O assunto gerou polêmica em âmbito nacional, alcançando seu ápice durante o Miss Estados Unidos de 2009: quando o blogueiro Perez Hilton perguntou à Miss California, Carrie Prejean, o que ela achava da privação de direitos, a candidata se posicionou negativamente. Muitos diziam que ela era a favorita para a faixa, mas que por conta da argumentação preconceituosa, restou-lhe o segundo lugar.

Prejean chegou a esboçar uma carreira de portavoz da forte campanha antigay dos Estados Unidos, tendo passado no primeiro semestre a impressão de tornar-se a estrela homofóbica do ano. Alguns escândalos porém, afastaram os religiosos da quase miss, e o anonimato parece ser a próxima etapa para Prejean.

A iconização de Harvey Milk
O filme pode ser do fim de 2008, mas o estouro é de 2009: “Milk”, de Gus Van Sant, foi sucesso de público e crítica. Se o recente êxito de Brokeback Mountain trouxe para o mainstream uma abordagem da vida particular de muitos homossexuais, Milk vai um passo a frente para falar sobre ativismo na década de 70, mostrando para o grande público um pouco da história do movimento gay.

As 8 indicações para o Oscar vieram consagrar o reconhecimento da película, e a conquista dos prêmios de Melhor Ator para Sean Penn e Melhor Roteiro Original para a obra de Dustin Lance Black reforçaram o coro. Os discursos do ator e do roteirista certamente marcaram a história da academia – e, senão, definitivamente a dos LGBTs – falando abertamente sobre preconceito e orgulho gay.

Com a visiblidade da obra, Harvey Milk passou a ser objeto de admiração de grande parte da comunidade gay, seja nos EUA ou no mundo. A imagem do falecido ativista passou, ao longo de 2009, por um processo de iconização, bem exemplificado pela medalha que Obama lhe dedicou e pela instauração do 22 de maio como “Milk Day” na Califórnia.

As vitórias da realeza ativista
Manvendra Singh Gohil pertence a uma dinastia que governa a Índia há quase seis séculos mas que, como algumas monarquias ainda vigentes, como em Espanha, Japão e Inglaterra, é mais simbólica do que política. Tendo se assumido para a família em 2002 e para a imprensa em 2006, foi publicamente rechaçado. Desde então, Manvendra vem desempenhando importante papel como ativista, sendo possivelmente o primeiro príncipe assumidamente homossexual contemporâneo. Sua aparição no programa da Oprah em 2007 recobrou sua popularidade entre os indianos.

A principal reivindicação de Manvendra era a descriminalização da homossexualidade na Índia, medida de quase 150 anos. Com sua efetividade, na metade do ano, 17% da população homossexual masculina do mundo – a indiana – deixou de ser perseguida pelas leis de seu país. Realizada a conquista, ele anunciou, durante a visita ao Brasil, a vontade de adotar um filho o mais breve possível.

Além de protestar, Manvendra também ganhou fama no ano que passou. Em janeiro de 2009, o hindu participou de um reality show da BBC chamado Undercover Princes, em que príncipes orientais iam para o Reino Unido viver como cidadãos comuns e procurar pessoas para namorar. A participação de Manvendra chamou a atenção pela (re)afirmação de sua homossexualidade. Em maio, foi anunciado que será realizado um filme sobre a vida do príncipe (!).

Enquanto isso, no Oriente Médio…
No mapa de direitos LGBTs ao redor do mundo, o Oriente Médio e o norte da África estão marcados em vermelho. É sabido que em lugares como os Emirados Árabes Unidos, a Árabia Saudita, o Iémen, o Irã, o Iraque e o Líbano existem medidas legais contra atos homossexuais – em alguns destes, pena de morte inclusive. Uma famosa ONG de direitos humanos, a Human Rights Watch, anunciou no final do primeiro semestre que só nesse ano centenas de gays foram torturados e assassinados no Iraque, dado este que alarmou a comunidade internacional. Além disso, ao longo de todo o ano pedidos de asilo de homossexuais perseguidos no Oriente Médio chegaram a países europeus, alguns negados e outros concedidos.

O fato que em 2009 mais chamou a atenção dos LGBTs no Oriente Médio se deu, no entanto, no único país da região que é favorável à legislação pró homossexual, além de possuir uma rica subcultura gay: Israel. No primeiro de agosto, um homem entrou armado na Associação de Gays e Lésbicas de Tel Aviv, atirou em todas as direções e fugiu, deixando dois mortos e vários feridos. Protestos em Israel e no mundo converteram a data desde já em tempo para protesto, numa espécie de Stonewall israelense do século XXI.

Yes, he can!
A campanha de Barack Obama para a presidência dos Estados Unidos, ao longo de 2008, foi provavelmente uma das mais marcantes campanhas eleitorais da década. Para gays norteamericanos, o impacto era absorvido também quando o candidato falava que se preocuparia com a questão homossexual caso fosse eleito.

Iniciando-se o mandato, iniciaram-se também as cobranças por parte dos ativistas. Mas a agenda presidencial parecia estar lotada, restando aos homossexuais um desconfortável silêncio. Por volta da metade do ano, enfim se constatou: ele esqueceu de nós. A capa do principal veículo de comunicação LGBT dos Estados Unidos, a revista Advocate, na edição de setembro, ao trocar o “Hope” da campanha original de Obama por um provocador “Nope?” põe em questão o modus operandi do presidente.

Foi nesse segundo semestre que o “silêncio rosa” do governante se quebrou. O Matthew Shepard Act e o discurso do presidente no jantar anual da Human Rights Campaign foram conquistas poderosas para os LGBTs dos Estados Unidos; o primeiro por conta da criminalização da homofobia federalmente e o segundo pela visibilidade que um presidente simpatizante pode dar. Mais do que isso, Obama é um dos políticos mais importantes do mundo, e tê-lo convencido de que os homossexuais devem ter os mesmo direitos que todos é algo significativo. Encerramos 2009 com os LGBTs dos Estados Unidos e do mundo apaixonados pelo presidente – e com a esperança de que nesses próximos anos venha muito mais.

Ativismo 2.0
2009 foi definitivamente o ano do Twitter. A mídia social ganhou uma popularidade só antes testemunhada antes por ferramentas como o Orkut ou Facebook, sendo utilizada ainda por importantes políticos e instituições. O Twitter foi o agitador do conteúdo da web nos últimos meses, estimulando o melhor uso de espaços de divulgação de idéias, como os blogs. A internet, mais especificamente a web 2.0, está na moda.

Os ativistas gays aparentemente souberam utilizar essas ferramentas a seu favor. De um belo vídeo com gays de todo o mundo afirmando estarem orgulhosos de sê-lo a um protesto de escala nacional realizado frente à Casa Branca, a internet serviu para aproximar as pessoas, botar ideias em discussão, agitar eventos. O primeiro ministro britânico Gordon Brown pediu desculpas pelo tratamento homofóbico dado ao matemático Alan Turing durante a década de 1940 por conta de uma petição online divulgada massivamente pelos homos do Reino Unido. Hoje uma grande quantidade de sites e blogs com as mais diferentes temáticas relacionadas a LGBTs está no ar, o que é extremamente significativo no sentido de criar uma base de apoio para quem precisa e promover o diálogo dentro e fora da dita “comunidade gay”.

O casamento gay na América Latina
Com o perdão do trocadilho, no último bimestre do ano assistimos a uma verdadeira novela mexicana gay na América Latina. No final de novembro foi anunciado que Alejandro Freyre, 39 anos, e Jose Maria Di Bello, 41, realizariam o primeiro casamento entre duas pessoas no mesmo sexo da América Latina, em Buenos Aires, por conta da aprovação da juíza Gabriela Seijas. O evento foi marcado para o primeiro de dezembro, visto que os noivos são soropositivos e queriam que a data coincidisse com o Dia Mundial da Luta Contra a AIDS. Um dia antes da consumação, porém, a juíza Marta Gómez Alsina operou uma manobra legal que garantiu o cancelamento do matrimônio. A notícia foi recebida com desgosto pelo casal, que, com postura ativista, deu a impressão de que o assunto ainda estava inacabado.

Enquanto isso, ao norte, no dia 21 de dezembro uma votação na asssembleia local da Cidade do México relativa ao casamento entre pessoas do mesmo sexo registrou 39 votos a favor e 20 contra. A adoção por casais homossexuais também foi aprovada no mesmo dia, concedendo aos gays da capital mexicana uma boa dose de direitos civis de uma só vez – a começar em março de 2010. Todos os olhos se voltaram para o México, esquecendo um pouco da derrota em Buenos Aires três semanas antes.

Mas Alejandro e Jose Maria, o casal de argentinos, não tinham desistido. Viajando para a província da Terra do Fogo, conquistaram o apoio da governadora para realizar o casamento, que se consumou no dia 28 através de um decreto da governante. Sete dias depois da primeira legislação pró casamento gay ser aprovada na América Latina, o primeiro casório efetivo ocorre, em um país totalmente distinto. Com os acontecimentos de 2009, os direitos LGBTs em contexto latinoamericanos parecem ter ganho uma base para continuar avançando.

40 anos de Stonewall
Foi em 2009 que o momento considerado marco do ativismo gay completou 40 anos: a rebelião de Stonewall foi relembrada, rediscutida e questionada por LGBTs de todo o mundo. Exposições, coquetéis, longos discursos em paradas. Se hoje não é mais reconhecida como “mito de criação” do ativismo gay, tal como era há algum tempo, Stonewall no mínimo ganha grande importância numa história da luta homossexual no século XX.

Uganda chama a atenção do mundo
No dia 13 de Outubro, um projeto de lei foi apresentado no parlamento de Uganda propondo a criminalização e penalização (de morte) da homossexualidade. O país já não é favorável às práticas homoeróticas, não efetivando punições no entanto por conta da necessidade de provas para a acusação – a nova lei facilitaria o processo, além de aumentar as penas. Governantes da Inglaterra, Canadá, França e Estados Unidos se manifestaram criticando o país africano, numa polêmica que se estende até o presente momento. Aguardamos pelo desfecho da situação, mas comemoramos desde já o amplo apoio recebido de todos os lados.

Lideranças assumidas
Por mais que o feminismo já não seja novidade, e que toda a conversa de que “a mulher está entrando no mercado de trabalho” também não, é só recentemente que temos visto mulheres assumirem importantes cargos políticos com mais frequência – as vizinhas Kirchner e Bachelet estão aí para servir de exemplo. Se cairmos na tentação de realizar um paralelo com a participação política homossexual, ainda temos uns bons anos até presidentes e ministros assumidos não serem mais motivo de estranheza. Até lá, cada caso que surge é uma novidade, mais um passo em direção a um reconhecimento respeitoso.


Na Alemanha, o vice chanceler eleito foi Guido Westerwelle, em coligação com o partido de Angela Merkel. Westerwelle é publicamente conhecido por ser homossexual, seja por sua participação em uma edição do Big Brother ou pelas constantes aparições com seu parceiro, Michael Mronz. A cidade de Houston, quarta maior metrópole norteamericana e maior cidade do homofóbico estado do Texas, elegeu uma prefeita assumidamente homossexual. Annise Parker, que se candidatou de forma independente, sofreu com uma campanha bastante homofóbica por parte da oposição, mas ganhou o apoio da comunidade gay dos Estados Unidos. Sua vitória foi bastante significativa para o país.

Vereadores, deputados e governantes menores à parte, 2009 foi o ano em que, pela primeira vez, o cargo de chefe de estado de um país foi ocupado por uma pessoa assumidamente homossexual. Depois de uma crise no governo islandês no ano de 2008, por conta da instabilidade da economia mundial na época, o executivo passou a ser liderado, a partir de 1º de fevereiro, pela ministra Johanna Sigurdardottir, que é casada com a jornalista Jonina Leosdottir.

Olhando pra frente
Mesmo um ativista mais rabugento há de convir que 2009 foi bom ano no quesito direitos. E ao passo que a tendência é que 2010 seja fantástico, com casamentos na Cidade do México, Áustria, Portugal e sabe-se lá onde mais, é bom lembrar que direito não é equivalente a respeito. Conforme os Estados reconhecem a homoafetividade e recriminam a homofobia, o preconceito encontra formas mais sutis de manifestação. Me parece que os próximos capítulos, além de ótimas comemorações, trarão o desafio de lidar com a hipocrisia do politicamente correto.


O que o Uruguai tem que nós não temos? Parte I

24 de novembro de 2009

Os ensaios de avanço na legislação relativa à homossexualidade no Uruguai têm chamado a atenção do nosso leitor Paulo Simas (que já apareceu por aqui com um texto excelente intitulado “Heternormatividade e Subculturação”). Intrigado com a antipatia do Estado brasileiro para com os LGBTs, ele vem há algum tempo realizando uma pequena pesquisa para responder essa pergunta. Porque nossos vizinhos estão melhor que nós nesse aspecto? Como a situação – lá e aqui – chegou a esse ponto? Afinal, que raios o Uruguai tem que nós não temos?

Aparentemente, a pesquisa rendeu muitos e bons frutos: um grande texto, dividido em duas partes, que a equipe do Homomento ganhou de presente para postagem (cabe dizer que caiu como uma luva na correria do fim de semestre – essa foi a primeira semana que não postamos Destaque!). Publicamos hoje a primeira parte, deixando a continuação para a semana que vem. Boa leitura!

O que o Uruguai tem que nós não temos? – parte 1
por Paulo Simas

Em outubro, o Senado do Uruguai aprovou uma lei que permite a mudança de sexo e de nome. Ela já havia passado pela Câmara dos Deputados e aguarda a sanção presidencial para começar a valer. O presidente Tabaré Vásquez é católico, mas nada indica que vá vetar a medida, pois seu governo está mudando a legislação do país para garantir os direitos da população LGBT. Primeiro foi a união civil, em 2008, depois o acesso às forças armadas, em maio, e, em setembro, a adoção de crianças por casais gays.

Na realidade, não está claro se a nova lei de adoção realmente permite que casais formados por pessoas do mesmo sexo obtenham a guarda conjunta de crianças. A parlamentar autora da lei diz que não, mas o governo acredita que sim. De qualquer modo, os direitos assegurados até aqui (união civil e entrada nas forças armadas) já colocam o Uruguai na vanguarda da América Latina. Além desse pequeno país de quase 3,4 milhões de habitantes, apenas Equador, Colômbia e regiões de Argentina e México dão algum tipo de reconhecimento legal às famílias formadas por pessoas do mesmo sexo.

No Brasil, nenhuma lei federal garante os direitos conjugais dos cidadãos não heterossexuais. O assunto mofa desde 1995 no Congresso Nacional e, agora, depende da boa vontade do Supremo Tribunal Federal, que promete um parecer para breve.

A diferença entre nós e os uruguaios é escandalosa, mas não se dá por acaso. Nosso vizinho está a nossa frente numa questão crucial para a liberdade e os direitos humanos: a laicidade do Estado. O governo e os tribunais daquele país são mais independentes da autoridade religiosa do que o brasileiro. Isso porque os políticos e funcionários públicos sabem que o que os legitima é a soberania popular, não a fé. Dessa forma, não atuam de acordo com as suas crenças pessoais, mas conforme o compromisso de trabalhar por todos os cidadãos uruguaios.

Trata-se de um conceito um tanto abstrato, mas que não é difícil de ser verificado na prática. A chamada laicização do Uruguai começou ainda em 1861, quando a Igreja Católica deixou de administrar os cemitérios. Continuou com o matrimônio civil, em 1865, e ganhou força no início do século XX, com o governo de José Batlle y Ordóñez. Ele, como boa parte da elite uruguaia, era influenciado pelas idéias liberais francesas e acreditava que a separação entre o político e o religioso era fundamental para a modernização do país. Assim, em 1907, ele comprou a briga contra os católicos e criou a primeira lei de divórcio do mundo. A posterior retirada dos crucifixos dos hospitais e prédios públicos e a abolição dos cultos em escolas públicas anteciparam o rompimento oficial com a Igreja, consagrado na Constituição de 1917.

A laicização não é exclusividade do Uruguai e há países que fizeram isso muito antes. No Brasil, por exemplo, ela estava inscrita já na Carta Magna de 1891. No entanto, o Uruguai passou por um processo muito mais radical, a ponto de o país ter adotado um novo calendário a partir de 1919, trocando os feriados religiosos por comemorações cívicas. Dessa forma, o Natal virou o Dia da Família e a Páscoa foi substituída pelo Dia do Turismo, por exemplo. Além disso, cidades com nomes de santos foram renomeadas, caso de Santa Isabel, que virou Paso de los Toros. Tudo para sinalizar à população que o país estava de fato se transformando.

Por aqui, tem-se a impressão de que a laicidade só existe no papel. Juízes citam passagens bíblicas em suas sentenças, repartições públicas ostentam crucifixos, políticos dizem que a Bíblia está acima da Constituição. Nossa Carta Magna, aliás, começa dizendo-se promulgada “sob a proteção de Deus”. É como se, no Brasil, o poder popular não bastasse para legitimar autoridades e políticas públicas. Nada contra a crença pessoal em determinada religião, pois a liberdade religiosa é tão importante para a democracia quanto a laicidade. O problema é quando o poder é exercido em nome e em benefício dessas seitas.

A nossa laicidade irregular é especialmente grave porque impede a garantia de direitos de uma parcela da população. Ela é o principal entrave, por exemplo, para a aprovação da união civil entre pessoas do mesmo sexo. O sociólogo Luiz Mello, que estudou as discussões na Câmara dos Deputados sobre o projeto proposto por Marta Suplicy em 1995, concluiu que a visão cristã de mundo impede que os deputados votem a favor do projeto. Afinal, não há argumento jurídico que justifique a criação de dois grupos distintos: os que podem e os que não podem constituir família. A única justificativa possível para a discriminação é de ordem moral. Ao adotá-la, os deputados levam em consideração não o seu dever com a sociedade, mas o compromisso com suas crenças pessoais. Colocam, assim, valores individuais acima dos interesses públicos.

Num Estado laico ideal, isso jamais poderia acontecer. É claro que ele não existe, pois a laicidade é um caminho a ser seguido, não um modelo fechado. Em países onde o processo está mais avançado, no entanto, é possível aprovar temas considerados tabus pelos religiosos. Foi por isso que o Congresso uruguaio aprovou as medidas pró-LGBT, apesar da forte pressão da Igreja Católica e da própria religiosidade do presidente. Apesar de católico, Tabaré Vázquez colocou seu governo e seu partido para trabalharem a favor dos projetos de interesse de LGBT.

Um parêntese: no caso do aborto, o presidente uruguaio fez o contrário e colocou sua fé na frente. O projeto passou pelo Congresso, apoiado inclusive pelo partido governista, mas foi vetado pelo presidente. Se fosse no Brasil, ficaria por isso mesmo; como o Uruguai tem um Estado mais laico que o nosso, o veto se transformou numa crise política. Seu partido, a Frente Ampla, o isolou e ameaçou expulsá-lo, além de retirar o apoio ao governo. O golpe mais duro veio logo depois: seu candidato à sucessão foi preterido na escolha interna e ele teve que engolir um nome considerado “mais à esquerda”.

Até aqui, tratei de um aspecto estrutural do Estado uruguaio, que explica por que a oposição dos religiosos aos projetos pró-LGBT não teve efeito, ao contrário do que acontece no Brasil. Mas a laicidade não explica tudo: por que, afinal, essas medidas foram aprovadas só agora? Minha tese é de que o governo que promoveu essas mudanças precisou do apoio da parcela progressista do eleitorado – o que não acontecia nos governos anteriores e o que não ocorre no Brasil. No próximo domingo, essa estratégia vai ser testada no segundo turno da eleição presidencial. Segundo as pesquisas, parece que ela deu certo: o candidato governista está 10 pontos a frente do rival. Mas tratarei disso em detalhes no próximo texto.

Fontes:

O laicismo no Uruguai – Kátia Adriano Matias da Silva e Sílvia Helena de Mendonça Fontenele. Revista Ameríndia: http://www.amerindia.ufc.br/articulos/pdf4/katia.pdf
Em defesa das liberdades laicas – Roberto Arriada Lorea (organização). Editora Livraria do Advogado
Novas famílias: conjugalidade homossexual no Brasil contemporâneo – Luiz Mello. Editora Garamond


Destaque da semana: enquete sobre a PLC 122

15 de novembro de 2009

Na semana que passou, o PLC 122/2006 deixou de ser assunto somente entre militantes e políticos. Graças a um ataque hacker, admitido pela administração do site do Senado na segunda-feira, uma enquete sobre o projeto recomeçou do zero. Religiosos atribuem o reinício a um sistema tendencioso, pois o “não” ao PLC vencia. Entre os que defendem a necessidade da criminalização, o projeto foi até tema de corrente de e-mails, pedindo votos a favor da iniciativa. Pelos comentários no Twitter, a galera está acompanhando bem de perto a votação. É o maior engajamento na rede em relação ao projeto desde a campanha no Twitter por assinaturas no abaixo-assinado Não Homofobia.

O Gay.Com.Br fez uma lista de argumentos, encontrados no Twitter, contrários ao PLC. O rol de motivos inclui tanto razões religiosas, como a crença em uma associação entre a homossexualidade e o Diabo, quanto consequências esdrúxulas como o possível desemprego de humoristas (se bem que levando em conta a quantidade de gente na mídia que só sabe fazer piada com gays, isso parece bem plausível). Podemos adicionar à lista tweets que denotam preocupação com o avanço dos direitos dos LGBT, outros que afirmam que isso é uma proibição da heterossexualidade, os que dizem que Cristo seria contra o projeto (a vantagem de crer em alguém que viveu no passado é poder apoiar-se em argumentos que ele teria, como se essa suposição – altamente subjetiva – tivesse validade). Os mais exaltados levam à potência máxima a figura da mordaça gay ao denunciar que homossexuais ameaçam de morte seus opositores.

Uma visão mais simplista da defesa do PLC 122 poderia levar a crer que somos contrários a esses argumentos listados. Pelo contrário, estamos abertos ao diálogo. Quando tais posições são assumidas, temos a chence de confrontá-las, de expor quais são as verdadeiras implicações do projeto e por que ele é necessário. Não vamos entrar no absurdo de responder às ideias exaltadas expostas no parágrafo anterior, mas já defendemos aqui que os principais temores dos fundamentalistas em relação ao PLC 122 – superprivilégios para os gays, glamurização da homossexualidade – são mentiras.

É muito bom que estejamos atentos ao projeto. Na terça-feira, o substitutivo apresentado por Fátima Cleide (PT-RO) foi aprovado pela Comissão de Assuntos Sociais, e segue para apreciação da Comissão de Direitos Humanos da Câmara. De lá, volta para a Câmara, pois o texto do projeto sofreu alterações, criminalizando também a discriminação a idosos e portadores de deficiência. E mesmo a nova redação é atacada pelos opositores da iniciativa, que defendem que a mudança é apenas uma manobra para facilitar a aprovação do projeto de lei. No afã de combater os direitos dos homossexuais, fecham os olhos para as injustiças sofridas por outras minorias. A oposição ao PLC 122 não tem vergonha de se mostrar conivente com o preconceito.

Update: no momento em que esse texto foi escrito, o “sim” ao projeto vencia com 53% dos votos na enquete do site do Senado.


Maine, Detroit e o armário

13 de novembro de 2009

Os frequentadores mais assíduos desse blog já devem ter notado que andamos um pouco reticentes. Esse é o problema de escrever como hobby – trabalho e estudo são prioritários e eventualmente o tempo aperta. Dentre as coisas que deixamos de mencionar nos últimos tempos, está a derrota na aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo no estado americano do Maine. O projeto de igualdade no casamento chegou a ser aprovado pelo Legislativo, mas uma manobra dos conservadores levou a decisão para votação popular.

E por que os conservadores deixaram matéria tão delicada nas mãos do povo? Os números explicam folgadamente essa estratégia: nas 31 vezes em que o casamento homossexual foi levado a referendos, o resultado foi o NÃO, diz a matéria da Associated Press (via Folha de SP). (Divagação breve: está literalmente em nossas mãos – no clique de nosso mouse – a chance de um resultado inclusivo numa votação de assunto LGBT: a enquete do Senado, que consulta a opinião popular acerca do PLC 122/2006. Ok, não tem o poder de um referendo, mas é importante que a gente não dê aos fundamentalistas o gostinho de dizer que a maior parte da população é contra o projeto. Se você ainda não opinou, corre lá!)

Toda essa enrolação é só para introduzir a tradução de hoje, sobre a derrota no Maine. O original foi publicado na coluna que John Corvino mantém no site 365gay. Pra quem lê em inglês, sugerimos também o texto de Amélie Chopkins, do The New Gay, sobre esse referendo.

Maine, Detroit e o Armário

Por John Corvino (escritor e professor de filosofia da Universidade Estadual do Wayne, em Detroit)

Quando eu era a “bicha” na pracinha da escola, apanhar doía mesmo quando eu sabia o que ia acontecer. Foi o que aconteceu com o Maine semana passada.

Como muitos, eu estava desanimado, mas não fiquei surpreso quando perdemos. Os direitos das minorias (gays, especialmente), geralmente não se saem bem quando submetidos à votação popular. E a mensagem central da oposição – que os gays querem influenciar crianças em idade escolar – mantém-se tão eficaz quanto sinistra.

A mensagem evoca a imagem de gays como molestadores de crianças, um mito desmascarado, mas nunca totalmente extinto.

A versão um pouco menos sinistra (mas ainda assim falsa) nos retrata como anti-família e anti-moral. Ainda há uma outra mentira que é a de que estamos tentando “recrutar”.

Então aí está a verdade subjacente que sustenta o mito como plausível. Sim, é claro que a igualdade da união homossexual irá afetar o que as crianças aprendem nas escolas, porque se o casamento entre pessoas do mesmo sexo for legal, elas naturalmente aprenderão que ele é legal. Que o casamento é uma opção para os adultos que assim consentem e desejam. Que às vezes mulheres se apaixonam por mulheres e homens por homens, e vivem felizes para sempre.

Nós não devíamos ter vergonha de dizer essas coisas, mas temos. Sem dúvida, a feiúra das versões sinistras – sem esquecer a propensão dos nossos adversários para nos citar fora de contexto – nos deixa nervosos sobre discutir a versão verdadeira. E isso é certamente uma lição dessa perda: o armário ainda é poderoso, e os nossos adversários o usam em proveito próprio.

Mas nós não vamos voltar para o armário novamente.

Nós vamos continuar contando nossas histórias. Continuaremos mostrando nossos rostos. Vamos continuar nos casando, mesmo se – por ora – o estado do Maine não reconhecer legalmente os nossos relacionamentos. Nós não vamos voltar ao armário novamente.

E apesar de termos perdido essa batalha específica, vamos continuar a ganhar a guerra.

No mesmo dia em que os eleitores do Maine não aprovaram a igualdade no casamento, Detroit (a cidade onde vivo) elegeu um presidente do conselho municipal abertamente gay. Isso, em uma cidade composta por 84% de afro-americanos e onde as igrejas exercem influência política considerável. O resto do país quase não percebeu, mas Detroit desafiou vários estereótipos na terça-feira.

Seu nome é Charles Pugh. Antes de concorrer para a Câmara Municipal, Pugh era um apresentador popular e foi aprovado tanto pelo Conselho de Pastores Batistas quanto pela AME Ministerial Alliance (Aliança Ministerial). Eles sabiam que ele era gay e aprovaram seu nome mesmo assim.

Alguém poderia argumentar que Pugh foi indicado – e venceu – por causa do reconhecimento de seu nome. Detroit elege todos os nove conselheiros-gerais, e o mais votado torna-se automaticamente presidente do conselho. É um sistema estúpido por vários motivos que, no passado, resultou na nomeação de membros de conselho famosos mas incompetentes – Martha Reeves, de Martha and the Vandellas, salta à mente. (Aliás, nas votações primárias deste ano, Reeves foi deixada de fora, e na eleição geral uma esmagadora parte dos eleitores aprovaram um referendo para os conselhos distritais).

Mas mesmo que a enxurrada de votos de Pugh possa ser atribuída à sua popularidade enorme, isso nos envia uma mensagem encorajadora sobre o modo como o mundo está mudando. Ser abertamente gay não é mais um obstáculo absoluto para a obtenção de apoio público. E mesmo aqueles que regularmente se opõem a nós, por vezes, vão deixar outros fatores triunfarem sobre o que nos tornava assustadores em outros momentos.
Enquanto isso, quanto mais eles nos conhecem, menos assustadores nos tornamos.

É injusto e lamentável que tenhamos que trabalhar mais do que os nossos adversários para vencer. Eles ganham por explorar o medo, o que é fácil de fazer quando se está em maioria. Nós ganhamos construindo relações – deixando os eleitores saberem quem realmente somos. Isso leva tempo.

Assim, os nossos adversários têm a vantagem de poder nos tirar do contexto, mas temos uma vantagem a longo prazo. O armário está desmoronando.

Na esteira da perda de Maine, vamos tomar fôlego e prosseguir. Nós continuaremos a viver nossas vidas, vamos continuar falando a nossa verdade. Vamos fincar o pé na firme convicção de que nosso amor é real, é valioso, e é digno de tratamento igual perante a lei.

Porque, seja qual for o obstáculo legal que possam colocar em nosso caminho, nós nunca mais vamos voltar ao armário novamente.

(Agradecimentos mil à minha digníssima consorte, Germana Etges, pela tradução do texto)

 

 


Destaque da semana: RJ é o melhor destino de turismo gay no mundo

8 de novembro de 2009

Um mês depois de ser eleita sede das Olimpíadas de 2016 e no dia seguinte à sua 14ª Parada  do Orgulho LGBT, a cidade do Rio de Janeiro recebeu uma notícia que une os gays e o reconhecimento internacional. O Rio recebeu o título de melhor destino internacional para turismo gay no Trip Out Travel Awards, prêmio promovido pela Logo TV, emissora voltada para o público homossexual.

Parada Rio

De acordo com os organizadores, a Parada realizada no domingo passado atraiu 1 milhão de pessoas

A eleição foi decidida através de votos ao redor do mundo. Em sua página no site do prêmio, são enumeradas algumas características do Rio que devem ter colaborado para sua vitória: ainda que o deslocamento pela noite carioca não seja dos mais seguros, o custo total da viagem é menor do que para destinos nos EUA ou na Europa. Sem contar as belezas naturais e a famosa liberalidade brasileira… Como é de bom tom, a Prefeitura do Rio ignorou o esterótipo de nossa sensualidade morena, sem deixar de destacar outra das facetas da brasilidade: a hospitalidade.

“O título de melhor destino gay é mais um reconhecimento da hospitalidade do nosso povo, que faz todos os visitantes se sentirem em casa. É um prazer e orgulho ser o prefeito de uma cidade acolhedora que respeita e valoriza as diferenças”, disse o [a assessoria do] prefeito. (Via G1)

É interessante confrontarmos essa avaliação com os dados coletados por um estudo, também divulgado nessa semana, que aponta a falta de informações turísticas LGBT como um dos principais problemas enfrentados pelos estrangeiros gays no Rio. Ou seja, o maior destino para turismo gay no mundo não tem uma estrutura de informação totalmente adequada para seus visitantes. A hospitalidade reside mais na nossa tolerância às diferenças do que à valorização delas.

rio melhor destino gay cartazSe houvesse verdadeira valorização – se não valorização, o mínimo respeito – pelos LGBTs na cidade do Rio, seria improvável o número de uma vítima de homofobia violenta por dia nos morros fluminenses. O clima de acolhimento, a atmosfera gay-friendly pertencem muito mais aos ricos turistas gays que circulam pela Farme de Amoedo do que à população da cidade. Pudera, como não ser tolerante com essa parcela de 25% dos turistas estrangeiros que gastam, na média, o dobro do que a maiora dos visitantes? (Os dados ainda são do estudo de Bayard Boiteux e Mauricio Werner, que encontramos através do Dolado).

Não temos argumentos para contestar a votação. Se LGBTs ao redor do mundo consideram o Rio de Janeiro um destino que vale a pena, eles devem estar certos. Uma cidade barata, bonita e divertida merece mesmo o título de melhor local para visitar (e acreditem, não há nenhuma centelha de inveja gaúcha nisso que digo). Só acho que nós, brasileiros de todos os cantos, não precisamos ser tão festivos com esse anúncio. Não somos turistas. E, a não ser para os economicamente privilegiados, não estamos tão expostos assim à ambivalente busca de respeito através do pink money.

Isso não quer dizer que eu não veja coisas boas na conquista desse título. Espero que o recebimento do prêmio cumpra pelo menos o básico, e leve a uma maior valorização dos turistas gays, refletida em uma estrutura de atendimento mais consistente. Como insisto em ter esperança, espero também que a tolerância às diferenças deixe de valorizar a origem da bandeira do cartão de crédito. Quem sabe um dia o Rio de Janeiro deixe de ser “só” a melhor cidade para os turistas gays e se torne uma boa cidade para os LGBTs cariocas…

Rumo a esse dia, um outro anúncio de teor simbólico também mereceu destaque nessa semana. Antes da Parada, no domingo que antecedeu a premiação, o prefeito Eduardo Paes entregou a chave da cidade para Gilza Rodrigues, presidente do Grupo Arco-Íris de Cidadania LGBT. “Deixo a cidade em suas mãos”, disse o prefeito.


História Queer e História Americana

30 de outubro de 2009

No encerramento de nossa semana dedicada à História LGBT, a tradução dessa sexta ressalta um ponto muito importante: quando se estuda a vida de LGBTs em outras épocas, não se pode perder a noção do conjunto. É impossível desvincular a história dos LGBTs do restante da História que estudamos no colégio – afinal, a sociedade que ainda hoje resiste a aceitar as sexualidades não-hétero é a mesma que hoje nega a existência do racismo, por exemplo, e os mecanismos que impedem a conquista plena da igualdade para um e outro grupo remontam ao mesmo passado.

Mais uma vez, traduzimos um artigo da Enciclopédia GLBTQ, de onde já tiramos a história das marchas em Washington. Hoje, em vez de um verbete, trazemos uma coluna de opinião.  Vicki Eaklor, a autora, é membro da American Historical Association e publicou o livro Queer America: A GLBT History of the 20th Century (Greenwood Press, 2008).

História Queer / História Americana

por Vicki Eaklor

Conforme eu ia escrevendo Queer America, o meu objetivo era o de oferecer uma fonte completa, ainda que concisa, para alunos, professores e qualquer outra pessoa que procurasse aprender alguma coisa sobre a experiência GLBTQ nos Estados Unidos nos últimos cem anos.

A necessidade desse livro surgiu a partir do meu próprio trabalho: cerca de quinze anos antes, eu tinha introduzido o curso “História Gay Americana” ao currículo da Alfred University, e de início achei difícil organizar uma lista de leituras. Desde então, como sabemos, o campo da história GLBTQ explodiu, com centenas de estudos maravilhosos sobre indivíduos e movimentos, abordagens e argumentos, constantemente levando-me a reconsiderar o conteúdo e o método de meu curso e minha pesquisa.

No entanto, dois temas com os quais comecei minha trajetória no ensino permanecem os mesmos e, na verdade, tiveram sua importância ampliada conforme eu escrevia o livro: a magnitude de nossa história – ela é tão vasta -, e o fato de que o passado GLBTQ, longe de ser “mais uma história” é parte integrante da história americana.

Dada a forma como a história é dividida em campos, tem sido relativamente fácil aceitar a guetificação desenvolvida desde os anos 60, quando os novos historiadores sociais começaram a reintegrar trabalhadores, mulheres, afroamericanos, indígenas, e, claro, os americanos homossexuais, entre outros, para a “história americana”. Tal era a força da história tradicional (branca, masculina, privilegiada, presumidamente heterossexual, política), porém, que a integração plena dessas histórias “minoritárias” tem acontecido lentamente, e isso quando chega a ser realizada.

O resultado é que a história dos EUA que a maioria dos americanos aprende ainda se assemelha menos a um picadinho composto por muitos elementos do que a uma refeição sofisticada feita de pratos separados, a maioria dos quais é “extra” e pode ser descartada dando preferência ao prato principal, a velha carne de sempre. É chegada a hora de resistir ao impulso e à conveniência desta abordagem, mostrando a natureza integrada de uma história com a outra. Assim, chego ao meu argumento de que a história queer é história americana, e vice-versa.

A história queer e a costumeira saga americana são interdependentes, de várias maneiras. Deixando de lado os efeitos evidentes da história dos EUA sobre as pessoas queer (relatados como eras de maior ou menor grau de homofobia, de acordo com as políticas existentes contra a homossexualidade), aqui vou me focar brevemente no contrário – o impacto das pessoas e movimentos queer na história dos EUA, e a centralidade do gênero como um tema agregador.

A discussão deveria avançar sem a necessidade de dizermos que é evidente que as pessoas GLBTQ, visíveis ou não, são parte da história nacional pelo simples fato de estarem entre “o povo americano”; nós servimos nas forças armadas na guerra e na paz, fizemos parte de todas as forças de trabalho, todos os movimentos pelos direitos civis, em todos os partidos políticos, e, pelo menos no caso de James Buchanan (se não também Lincoln), podemos ter vivido também na Casa Branca.

Além disso, como Lillian Faderman argumentou brilhantemente em To Believe in Women, não é apenas a presença óbvia dos queers que deve ser reconhecida, mas muitas vezes o papel crucial que eles desempenharam em alguns dos principais eventos do país. (Faderman mostra, por exemplo, o papel central das lésbicas em todas as grandes reformas educativas e sociais nos últimos 100 anos.)

Outros exemplos de vozes queer (exploradas com mais profundidade no meu livro) incluem as do Renascimento do Harlem e do desenvolvimento do blues como uma forma de arte (Alain Locke, Langston Hughes, Bessie Smith, Ma Rainey), o desenvolvimento da arte moderna e música (Andy Warhol, John Cage); teatro e música tipicamente americanos (Tennessee Williams, Aaron Copland, Leonard Bernstein); e também aqueles que influenciaram profundamente o pensamento, a literatura e o ativismo pelos direitos civis e o feminismo no pós-guerra (Bayard Rustin, Adrienne Rich, Rita Mae Brown).

Além de modificar a história tradicional dos “nomes famosos”, contudo, a história queer sugere que esses eventos e movimentos específicos para pessoas GLBTQ estão totalmente alinhados à trajetória da história americana como ela é concebida com frequência: como uma história de extensão gradual dos direitos civis (quando não chega a uma igualdade plena) para uma proporção cada vez maior da população.

Se pensarmos nas nossas origens como nação, quando só homens brancos com posses e 21 anos ou mais de idade eram considerados cidadãos plenos, as fileiras de eleitores potenciais expandiram-se ao longo dos dois últimos séculos, com os excluídos da participação social e econômica repetidamente organizando-se em movimentos para exigir o seu lugar. O resultado disso é uma “política de identidade”, em que as mesmas características (raça, religião, sexo) usadas para justificar a discriminação tornam-se a base para a organização de grupos para combater a desigualdade.

Os chamados “homossexuais” também começaram a pensar nesses termos nos meados do século XX, e se organizar como um movimento político. Ao fazer isso, cada grupo – da sociedade Mattachine da década de 1950 e os piqueteiros da década de 1960, até a Força-Tarefa Nacional Gay e Lésbica da década de 1970, a Campanha de Direitos Humanos de 1980, e GenderPAC da década de 1990 – oferece insights importantes para a evolução da política GLBTQ, e da política da nação como um todo.

Finalmente, qualquer tentativa séria de reintegrar as pessoas queer novamente à história americana nos leva não só a repensar o que é a história e por que estudá-la, mas nos lembra o tempo todo que toda a história que omita o gênero como tema é incompleta.

No mínimo, a nossa insistência nacional na conformidade de gênero (na ideia de que os papéis de gênero são atribuídos em conformidade com o sexo das pessoas) explica muito sobre a história que temos de homofobia, já que gênero e sexualidade são confundidos com tanta frequência ( aquela pressuposição de que os homens efeminados e mulheres masculinas são também gays ou lésbicas).

O gênero também aparece em nossa história econômica e política. Será que podemos realmente compreender o capitalismo ou o militarismo sem notar que o sucesso nessas áreas depende de um culto da masculinidade?

Podemos compreender plenamente o impacto da Guerra Fria, enquanto omitirmos a mania contra homossexuais subversivos que superou até mesmo o Pavor Vermelho, seja em Washington ou em Hollywood?

Essas perguntas poderiam ser multiplicadas para incluir cada era e cada evento em nosso passado, e a resposta tácita delas (não, nos dois casos) abre mais linhas de investigação, que só podem melhorar a compreensão do nosso presente, bem como do nosso passado.


Milk: 30 anos depois

28 de outubro de 2009

Eis um nome que fora do eixo norte-americano certamente não significava muito, ou mesmo nada, até o começo de 2009: Harvey Milk. A produção e posterior premiação do filme de Gus Van Sant foram responsáveis pela propagação da imagem e até iconização do ativista, ao menos no cenário LGBT.

Sean Penn no papel de Harvey Milk (2008)

Sean Penn no papel de Harvey Milk (2008)

Não foram só a interpretação de Sean Penn e a qualidade do roteiro, posteriormente premiados com Oscars, ou mesmo a temática da história, pouco contemplada em geral pelo cinema do mainstream, que impulsionaram a bilheteria do filme. Percebe-se a presença de um tino comercial para o lançamento de uma película como essa, no contexto em que foi lançada. Além de resgatar com esmero a figura política de Milk, ela também reproduz o cenário conservador em que Harvey viveu e militou – e que, notadamente, não se transfigurou tanto assim até hoje.

30 anos depois: a semelhança dos cenários

A 27 de novembro de 1978, Harvey Bernard Milk foi assassinado em San Francisco. 30 anos depois, a data escolhida para a estréia de sua biografia cinematográfica, a população dos Estados Unidos enfrentava uma situação política de avanços e retrocessos. Foi em novembro de 2008 que ocorreu a aprovação da Proposition 8 na Califórnia, tendo o apoio de 52,24% dos cidadãos votantes e representando um largo passo para trás na luta pelos direitos igualitários não só no estado como no país: cententas de casamentos entre pessoas do mesmo sexo foram anuladas, e um direito que recém havia sido concedido lhes foi novamente negado. Em novembro, também, os norte-americanos foram às urnas para eleger seu novo presidente, Barack Obama.

Se em 1978 conferimos a primeira vitória política de um homossexual assumido, em 2008 foi eleito o primeiro presidente negro dos Estados Unidos. Ainda que sejam cargos e minorias diferentes entre si, é inevitável fazer essa associação; além do mais, tanto um quanto outro discursaram com a intenção de combater desigualdades e preconceitos na sociedade norte-americana, cada um dentro de seus alcances.

Na ordem social e midiática, também conferimos algumas semelhanças. No ínicio de 2009, com a Prop 8 recém aprovada – e muito contestada pelos homossexuais da California -, aconteceu o tradicional concurso Miss USA. A candidata predileta era justamente a californiana Carrie Prejan, que, indagada a respeito do matrimônio homossexual, se posicionou negativamente. Ao fim do concurso ela ficou na 2º posição, havendo especulação a respeito de um desfavorecimento por conta do comentário preconceituoso. Em contrapartida, Carrie recebeu o título informal de símbolo da luta contra o casamento gay. Até mesmo porque reafirmou sua opinião em entrevistas e aparições posteriores, dando voz ao discurso cristão.

Anita Bryant (1964) e Carrie Prejan (2008)

Anita Bryant (1964) e Carrie Prejan (2008)

Semelhante é o caso de Anita Bryant, ícone de beleza e famosa cantora/garota propaganda dos anos 60-70. Anita, que é retratada no filme, liderou a partir de 1977 uma espécie de cruzada pelos Estados Unidos contra a aprovação de leis favoráveis aos direitos homossexuais. Apelando para a fantasiosa “ameaça” que os gays representavam aos bons costumes e principalmente as crianças “indefesas e puras”, Bryant encabeçou a criação e foi a principal porta-voz do movimento “Save Our Children”.

"SIM, ANITA! Eu quero ajudar você a trazer de volta aos Estados Unidos a moralidade e Deus." Cartão-reposta distribuído pelo território americano para angariar fundos e recrutar apoio

Cartão-reposta distribuído pelo território americano para angariar fundos e recrutar apoio, com os dizeres: SIM, ANITA! Eu quero ajudar você a trazer de volta aos Estados Unidos a moralidade e Deus.

Sejam por essas, ou outras eventuais semelhanças mais sutis aqui não citadas, que uma maior identificação com a obra foram possíveis, acabando por sublinhar a trajetória de Milk no cinema e refletir diretamente na imagem do mesmo fora das telas.

A consagração do ícone

Fato é, que no dia 12 de agosto de 2009, o mesmo presidente Barack Obama distribuiu uma Medalha Presidencial de Honra à cidadãos que auxiliaram a melhoria nas mais diversas categorias do país. Harvey Milk foi agraciado com a medalha póstuma, num gesto que simboliza a forte revitalização de sua imagem, posterior ao filme, como símbolo da luta pelos direitos LGBT.

Outra medida considerável foi a recente assinatura de uma lei, pelo governador da Califórnia (também conhecido ator) Arnold Schwarzenegger, em que oficializa o dia 22 de maio como Harvey Milk day, em celebração a data de nascimento do político.

Acredito que, longe de minimizar a importância de Milk ou desmerecer a honraria, a lei evidencia bem a crescente relevância do nome no cenário atual, seja ligado a luta pelos direitos, como também, agora a reafirmação do mesmo como ícone da cultura gay.

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O caso de Milk é importante, pois acaba tornando mais nítida a inserção de uma figura primeiramente política em posterior referencial cultural. Principalmente em meios, como o LGBT, em que militância e cultura tem seus limites definidos por uma linha tênue que poucas vezes pode ser identificada.

Falar mais da biografia dele seria apenas tentar reproduzir uma imagem grosseira do que Gus Van Sant conseguiu captar com delicadeza e apuro. Resta inspirar-se, fazer repercutir o legado e levar adiante a luta de Harvey Milk.

* Embora o filme de 2008 tenha alcançado um número ímpar de espectadores, dando uma projeção internacional ao nome, não foi a primeira produção que se propôs a contar a vida de Harvey Milk. Em 1984 um documentário chamado “The Times of Harvey Milk” foi realizado e premiado com o Oscar de melhor documentário do ano.

(Edição final: Pedro)