Dogmas da Razão

23 de abril de 2010

Abril tem sido um mês de declarações absurdas vindas de sujeitos importantes, dotados de poder e visibilidade. Na segunda-feira da semana passada, dia 12, o cardeal Tarcisio Bertone afirmou que “diversos psicólogos e psiquiatras já declararam que não há relação entre o celibato e a pedofilia, enquanto muitos outros disseram, pelo que fui recentemente informado, que há a relação entre pedofilia e homossexualismo (sic)”. Quem também nos agraciou com sua sabedoria na última terça, 20, foi o presidente boliviano Evo Morales, dizendo que “o frango que comemos está carregado de hormônios femininos. Por isso, os homens que comem esses frangos têm desvios em seu ser como homens”.

Felizmente a contestação veio como resposta para ambos: contra o cardeal, ativistas gays de todo o mundo e o próprio Vaticano; contra o presidente, os exportadores de frango (!). É que a base argumentativa dos senhores, por mais científica que seja, é já ultrapassada, considerada ridícula pela comunidade acadêmica. Dentro dessa lógica, se Bertone e Morales fossem leitores mais assíduos, influenciados por um conhecimento atualizado e politicamente correto, não profeririam tais besteiras.

Mas será que o problema se resume a isso? Uma mera falta de atualização?

Quem tem alguma leitura sobre o tema da sexualidade sabe que a ciência natural foi, historicamente, uma das ferramentas mais eficientes na sua repressão. Nos séculos XVIII e XIX, quando a razão iluminista se abateu sobre os homens, as justificativas católicas para a privação do sexo já não eram satisfatórias, e o controle do Estado sobre o corpo se justificou pouco a pouco através de estudos cientificamente comprovados.

Muito se fala que o homem pré-moderno era tolo, imerso numa escuridão de ignorância que era gerada e operada pelo cristianismo, mas há algumas decadas há pensadores que apontam para uma simples mudança de paradigma: do religioso para o científico. Se antes a religião era a forma de enxergar e explicar o mundo, além de código normativo de conduta do ser humano, agora era vez da ciência ditar as regras. Tornou-se verdade absoluta e incontestável, com um lugar de alto prestígio nas sociedades.

A crítica aqui não é no sentido de se construir uma anarquia do saber, em que a intuição é mais válida que o empirismo, mas de se levar em conta que a episteme e o método são suscetíveis a falhas. Não se pode apenas tirar a religião do altar para substituí-la pela Razão. Deve-se destruir o próprio altar.

Os dois casos, do cardeal e do presidente, exemplificam bem essa substituição de prioridades. O preconceito com homossexuais é antigo, de origem cristã, mas a justificativa é científica. Até o representante de uma das maiores instituições religiosas do mundo reconhece que o mundo em que vive é cético, e, adepto de uma teologia que convive em paz com a ciência, se vale de argumentos científicos para tentar fazer imprensa e sociedade concordarem com seu preconceito, que tem origem religiosa. Mantém-se os valores e as construções sociais, alteram-se os meios para legitimá-las.

Os senhores bem poderiam buscar novos estudos biológicos e psiquiátricos sobre a sexualidade, buscando novas formas de embelezar sua homofobia, e talvez até tivessem sucesso em seu objetivo. Alguns cientistas naturais insistem em estudar as sexualidades e suas “origens”, pensando que podem explicar tudo. A antropologia, que por relativizar a cultura ocidental ensaiou um rompimento com os paradigmas iluministas, nos diz no entanto que a sexualidade é assunto cultural, manifestando-se de maneira distinta em cada sociedade e fora portanto do escopo dos estudiosos da natureza. Fato que o cardeal e o presidente, limitados pelos dogmas da Razão, estão inaptos a enxergar.


Igreja à beira de um ataque de nervos

12 de agosto de 2009

almodovar

Ao ser entrevistado pelo semanário alemão Die Zeit o cineasta espanhol Pedro Almodóvar, que divulgava o seu novo filme, “Los Abrazos Rotos” fez repercutir mais uma vez a sua opinião, ao declarar que a diversidade na composição familiar é ignorada pela igreja católica.

Não é a primeira crítica de Almodóvar à igreja. O cineasta, que é assumidamente homossexual, solicitou ao papa Bento XVI que saia do Vaticano e repare as inúmeras possibilidades e formações familiares que o cercam. Ainda em alusão ao tema afirma que existem famílias constituidas por transexuais, travestis, pais separados e inclusive freiras com AIDS. Em certa ocasião em uma entrevista ao jornal espanhol El País Almodóvar declarou:

Sou anticlerical, mas como indivíduo não tenho nenhuma necessidade de lutar contra a Igreja, porque para mim não é um fantasma do qual tenha que me defender. Acho que a Igreja espanhola atreve-se a dizer umas coisas na nossa sociedade que devemos rebater porque são muito perigosas, como por exemplo que a emancipação da mulher está relacionada com as mortes e com os maus tratos. É uma das coisas mais fortes que jamais ouvi contra a condição feminina.

giuseppe

O Vaticano respondeu através de Giuseppe Dalla Torre, presidente do Tribunal do Vaticano, que afirmou que o papa não precisa sair do Vaticano para tomar consciência dos fenômenos sociais e que a Igreja Católica está presente em todos os contextos humanos e certamente conhece melhor como funciona o mundo. Justificou os casos como marginais em relação ao total do planeta. A resposta termina com a seguinte colocação: “certa cinematografia quer ser um reflexo da sociedade ou, pelo contrário, quer incidir sobre a realidade social para modificar os seus valores éticos e cultura?”.

As colocações de Dalla Torre, assim como o posicionamento da igreja católica no seu geral, são mais uma vez infelizes e inconsistentes. Acho que o questionamento mais apropriado nesse caso seria: por que essa certa cinematografia não pode questionar os valores éticos e culturais impostos pela igreja católica? A qual, inclusive, contribuiu e muito, se não foi uma das maiores responsáveis, na marginalização dos casos citados por Pedro Almodóvar, fazendo com que quando não sejam taxados e repudiados pela normatividade construída sejam simplesmente ignorados e deixados realmente nas bordas da sociedade, longe do foco e da necessidade de discussão. Dando assim apenas duas opções para todos: que se forcem a negar a sua realidade e permaneçam dentro do templo ou que se afastem de vez da religião que insiste em apontar e dizer: a culpa é de vocês.