História da GLAAD

15 de janeiro de 2010

Recentemente a Aliança Gay & Lésbica Contra a Difamação (em inglês, formando a sigla GLAAD) anunciou os indicados para seu prêmio anual. Muito se tem comentado sobre os escolhidos – Lady GaGa, os seriados Glee e Grey’s Anatomy, a revista People e o filme Prayers for Bobby, para mencionar alguns aleatórios – mas será que todos sabem exatamente o que é a GLAAD e o que é feito por eles? A tradução dessa sexta é um texto emitido pela organização contando um pouco da sua história e do que é feito por lá. Por mais que tenha ares de propaganda, bem release oficial mesmo, vale a pena a leitura.

História da GLAAD
Pense em algum tempo atrás, quando as palavras “gay” e “lésbica” eram tabus na mídia – um tempo em que a manchete do seu jornal estampava, na primeira página, histórias homofóbicas, um tempo em que a indústria do entretenimento não pensava duas vezes antes de produzir imagens estereotipadas e preconceituosas de gays e lésbicas. Não faz tanto tempo quanto você pode pensar.

Menos de 25 anos atrás, antes da formação da Aliança Gay & Lésbica Contra a Difamação (GLAAD), representações de lésbicas e homens gays tendiam a cair em uma das duas categorias: difamatório ou inexistente. Desde sua criação, o impacto da GLAAD na visibilidade da nossa comunidade tem sido de grande alcance. Não só os funcionários e voluntários do GLAAD transformaram a maneira como gays e lésbicas são retratados na televisão e nas notícias, como tornamo-nos também uma importante fonte de recursos e informações para o entretenimento e tomadores de decisão da mídia. A Entertainment Weekly nomeou a GLAAD como uma das entidades mais poderosas de Hollywood, e o Los Angeles Times descreveu-a como “possivelmente a mais bem-sucedida organização de lobby da mídia para a inclusão”.

Formado em Nova York em 1985 para protestar contra a grosseira, difamatória e sensacionalista cobertura do New York Post da AIDS, o trabalho da GLAAD rapidamente se espalhou por Los Angeles, onde começou a educar a indústria do entretenimento de Hollywood sobre a importância das representações mais precisas e realistas na tela. Conforme o trabalho da GLAAD cresceu, a organização ganhou espaço nacional, com escritórios em Nova York, Los Angeles e San Francisco. Para servir os interesses regionais e locais de mídia, o Programa de Mídia Regional da GLAAD cresceu para ajudar comunidades locais em todo o país mobilizando campanhas, treinando a mídia e outras ações.

Tendo cultivado relações com profissionais de mídia através de duas décadas, lista de realizações da GLAAD denota uma contribuição significativa e contínua, à igualdade LGBT. Não foi até 1987, após uma reunião com o GLAAD, por exemplo, que o The New York Times mudou sua política editorial para usar a palavra “gay”. Vinte e um anos depois, o projeto Anunciando a Igualdade resultou em mais de 1.000 jornais em todo o país – incluindo o The New York Times – optando por incluir anúncios de gays e lésbicas junto a outros anúncios de casamento.

A GLAAD não atinge apenas os bastidores da mídia, mas também tem impactado milhões através de jornais, revistas, cinema, televisão e campanhas de visibilidade. Nós chamamos a atenção da mídia para: o ódio motivado assassinato de Matthew Shepard, Arthur “JR” Warren, Brandon Teena, Fred Martins, Gwen Araujo e outros; a defesa anti-gay de “Dr. Laura” Schlessinger, letras de Eminem ódio; os heróis gays e vítimas de 9-11; os anúncios de “ex-gays”, e mais recentemente, as tentativas de oficiais da Igreja católica de envolver padres gays inocentes em histórias de abuso sexual.

Por causa do trabalho da GLAAD, histórias e temas ligados a gays e lésbicas são tratados nas publicações nacionais e locais, nos filmes e na televisão. Representações negativas e indelicadas da comunidade têm diminuído, enquanto as lésbicas e homens gays têm sido cada vez mais incorporados em quase todo tipo de plataforma de mídia – das novelas às histórias em quadrinhos. Mas há muito trabalho ainda a fazer. Representações de transgêneros e bissexuais, de todo o espectro da diversidade da nossa comunidade, e representações precisas de nossos relacionamentos são apenas alguns domínios onde GLAAD continua a concentrar os recursos e atenção.

Atenta às constantes mudanças da mídia na atualidade, a GLAAD continua fornecendo aos jornalistas e profissionais de mídia informações oportunas, abrangentes e concisas, ampliando a representação da nossa comunidade de notícia em notícia, através de uma eficiente e poderosa combinação entre advocacia, educação e visibilidade.


História Queer e História Americana

30 de outubro de 2009

No encerramento de nossa semana dedicada à História LGBT, a tradução dessa sexta ressalta um ponto muito importante: quando se estuda a vida de LGBTs em outras épocas, não se pode perder a noção do conjunto. É impossível desvincular a história dos LGBTs do restante da História que estudamos no colégio – afinal, a sociedade que ainda hoje resiste a aceitar as sexualidades não-hétero é a mesma que hoje nega a existência do racismo, por exemplo, e os mecanismos que impedem a conquista plena da igualdade para um e outro grupo remontam ao mesmo passado.

Mais uma vez, traduzimos um artigo da Enciclopédia GLBTQ, de onde já tiramos a história das marchas em Washington. Hoje, em vez de um verbete, trazemos uma coluna de opinião.  Vicki Eaklor, a autora, é membro da American Historical Association e publicou o livro Queer America: A GLBT History of the 20th Century (Greenwood Press, 2008).

História Queer / História Americana

por Vicki Eaklor

Conforme eu ia escrevendo Queer America, o meu objetivo era o de oferecer uma fonte completa, ainda que concisa, para alunos, professores e qualquer outra pessoa que procurasse aprender alguma coisa sobre a experiência GLBTQ nos Estados Unidos nos últimos cem anos.

A necessidade desse livro surgiu a partir do meu próprio trabalho: cerca de quinze anos antes, eu tinha introduzido o curso “História Gay Americana” ao currículo da Alfred University, e de início achei difícil organizar uma lista de leituras. Desde então, como sabemos, o campo da história GLBTQ explodiu, com centenas de estudos maravilhosos sobre indivíduos e movimentos, abordagens e argumentos, constantemente levando-me a reconsiderar o conteúdo e o método de meu curso e minha pesquisa.

No entanto, dois temas com os quais comecei minha trajetória no ensino permanecem os mesmos e, na verdade, tiveram sua importância ampliada conforme eu escrevia o livro: a magnitude de nossa história – ela é tão vasta -, e o fato de que o passado GLBTQ, longe de ser “mais uma história” é parte integrante da história americana.

Dada a forma como a história é dividida em campos, tem sido relativamente fácil aceitar a guetificação desenvolvida desde os anos 60, quando os novos historiadores sociais começaram a reintegrar trabalhadores, mulheres, afroamericanos, indígenas, e, claro, os americanos homossexuais, entre outros, para a “história americana”. Tal era a força da história tradicional (branca, masculina, privilegiada, presumidamente heterossexual, política), porém, que a integração plena dessas histórias “minoritárias” tem acontecido lentamente, e isso quando chega a ser realizada.

O resultado é que a história dos EUA que a maioria dos americanos aprende ainda se assemelha menos a um picadinho composto por muitos elementos do que a uma refeição sofisticada feita de pratos separados, a maioria dos quais é “extra” e pode ser descartada dando preferência ao prato principal, a velha carne de sempre. É chegada a hora de resistir ao impulso e à conveniência desta abordagem, mostrando a natureza integrada de uma história com a outra. Assim, chego ao meu argumento de que a história queer é história americana, e vice-versa.

A história queer e a costumeira saga americana são interdependentes, de várias maneiras. Deixando de lado os efeitos evidentes da história dos EUA sobre as pessoas queer (relatados como eras de maior ou menor grau de homofobia, de acordo com as políticas existentes contra a homossexualidade), aqui vou me focar brevemente no contrário – o impacto das pessoas e movimentos queer na história dos EUA, e a centralidade do gênero como um tema agregador.

A discussão deveria avançar sem a necessidade de dizermos que é evidente que as pessoas GLBTQ, visíveis ou não, são parte da história nacional pelo simples fato de estarem entre “o povo americano”; nós servimos nas forças armadas na guerra e na paz, fizemos parte de todas as forças de trabalho, todos os movimentos pelos direitos civis, em todos os partidos políticos, e, pelo menos no caso de James Buchanan (se não também Lincoln), podemos ter vivido também na Casa Branca.

Além disso, como Lillian Faderman argumentou brilhantemente em To Believe in Women, não é apenas a presença óbvia dos queers que deve ser reconhecida, mas muitas vezes o papel crucial que eles desempenharam em alguns dos principais eventos do país. (Faderman mostra, por exemplo, o papel central das lésbicas em todas as grandes reformas educativas e sociais nos últimos 100 anos.)

Outros exemplos de vozes queer (exploradas com mais profundidade no meu livro) incluem as do Renascimento do Harlem e do desenvolvimento do blues como uma forma de arte (Alain Locke, Langston Hughes, Bessie Smith, Ma Rainey), o desenvolvimento da arte moderna e música (Andy Warhol, John Cage); teatro e música tipicamente americanos (Tennessee Williams, Aaron Copland, Leonard Bernstein); e também aqueles que influenciaram profundamente o pensamento, a literatura e o ativismo pelos direitos civis e o feminismo no pós-guerra (Bayard Rustin, Adrienne Rich, Rita Mae Brown).

Além de modificar a história tradicional dos “nomes famosos”, contudo, a história queer sugere que esses eventos e movimentos específicos para pessoas GLBTQ estão totalmente alinhados à trajetória da história americana como ela é concebida com frequência: como uma história de extensão gradual dos direitos civis (quando não chega a uma igualdade plena) para uma proporção cada vez maior da população.

Se pensarmos nas nossas origens como nação, quando só homens brancos com posses e 21 anos ou mais de idade eram considerados cidadãos plenos, as fileiras de eleitores potenciais expandiram-se ao longo dos dois últimos séculos, com os excluídos da participação social e econômica repetidamente organizando-se em movimentos para exigir o seu lugar. O resultado disso é uma “política de identidade”, em que as mesmas características (raça, religião, sexo) usadas para justificar a discriminação tornam-se a base para a organização de grupos para combater a desigualdade.

Os chamados “homossexuais” também começaram a pensar nesses termos nos meados do século XX, e se organizar como um movimento político. Ao fazer isso, cada grupo – da sociedade Mattachine da década de 1950 e os piqueteiros da década de 1960, até a Força-Tarefa Nacional Gay e Lésbica da década de 1970, a Campanha de Direitos Humanos de 1980, e GenderPAC da década de 1990 – oferece insights importantes para a evolução da política GLBTQ, e da política da nação como um todo.

Finalmente, qualquer tentativa séria de reintegrar as pessoas queer novamente à história americana nos leva não só a repensar o que é a história e por que estudá-la, mas nos lembra o tempo todo que toda a história que omita o gênero como tema é incompleta.

No mínimo, a nossa insistência nacional na conformidade de gênero (na ideia de que os papéis de gênero são atribuídos em conformidade com o sexo das pessoas) explica muito sobre a história que temos de homofobia, já que gênero e sexualidade são confundidos com tanta frequência ( aquela pressuposição de que os homens efeminados e mulheres masculinas são também gays ou lésbicas).

O gênero também aparece em nossa história econômica e política. Será que podemos realmente compreender o capitalismo ou o militarismo sem notar que o sucesso nessas áreas depende de um culto da masculinidade?

Podemos compreender plenamente o impacto da Guerra Fria, enquanto omitirmos a mania contra homossexuais subversivos que superou até mesmo o Pavor Vermelho, seja em Washington ou em Hollywood?

Essas perguntas poderiam ser multiplicadas para incluir cada era e cada evento em nosso passado, e a resposta tácita delas (não, nos dois casos) abre mais linhas de investigação, que só podem melhorar a compreensão do nosso presente, bem como do nosso passado.


Outubro: Mês da História LGBT

27 de outubro de 2009

O senso comum pouco conhece o ativismo gay. Acredito que mesmo Stonewall, marco das lutas LGBTs, ganha pouca atenção da grande mídia – visto que está completando 40 anos em 2009 e pouco foi mencionada por aí.

É sabido que o preço da fama de alguns movimentos sociais foi alto para seus manifestantes. Queimação de sutiã e instauração do matriarcado são clichês contra os quais as feministas têm de lutar constantemente, explicando à exaustão que ser feminista não significa abdicar da feminilidade, ser lésbica ou querer que todos os homens morram. Mas se a alta exposição é prejudicial, não podemos deixar de esquecer que a invisibilidade também tem seus malefícios: se uma menina inconformada com a submissão que lhe é sugerida sabe, mesmo através da visão esterotipada, que existem mulheres que combatem tal situação, não necessariamente uma menino afeminado tem conhecimento da existência de toda uma estrutura ativista, com uma história própria, que visa a defesa da diversidade sexual.

Essa ausência de referenciais históricos relativos ao ativismo gay vem sendo notada e, progressivamente, diferentes iniciativas vêm tentando suprí-la. É nessa onda que foi instituído o GLBT History Month.

O GLBT History Month

Em 1994 o professor Rodney Wilson inaugurou a iniciativa, nos Estados Unidos, escolhendo Outubro por ser o mês de outra data ativista – o National Coming Out Day (o recém trazido para o Brasil “Dia de Sair do Armário”). A idéia foi apoiada por instituições gays como o GLAAD e o HRC e reforçada com a ajuda da National Education Association. Desde 2006, o Equality Forum se responsabilizou pela manutenção do interessantíssimo site da iniciativa.

LGBTHM

Inspirado nos Black and Women’s History Months, o GLBT History Month destaca anualmente as realizações de, de 31 ícones gays, lésbicos, bissexuais ou transgêneros. (…) Começando no dia 1 de outubro de 2009, um novo ícone GLBT é apresentado a cada dia. Você terá acesso a um vídeo, uma biografia e outros recursos, juntamente com informações sobre todos os ícones anteriores. Basta clicar sobre o nome do ícone, correspondente ao dia do mês.

Os vídeos e minibiografias já abordaram desde figuras conhecidas pelo grande público como Leonardo da Vinci, Michelangelo, Alan Turing, Cole Porter, Basquiat e Andy Warhol, a personalidades que apenas o público ativista mais experiente conheceria, como Alfred Kinsey, Rachel Maddow, Cleve Jones e Tammy Baldwin, passando ainda por celebridades como Ellen DeGeneres, Ian McKellen e Melissa Etheridge.

A versão britânica do Mês da História LGBT ocorre em fevereiro, devido a conquistas próprias de direitos dos gays britânicos, e começou em 1997. O site inglês explica a necessidade do evento e deixa claro que não quer reafirmar noções modernas de sexualidade, encaixando as personalidades históricas nas letras L, G, B ou T, mas apenas reparar o dano realizado pela heteronormatividade, levando assim ao ambiente educacional a noção de que a realidade da sexualidade humana é muito mais abrangente do que pensamos.

Além da consistência do projeto, a versão britânica conta com uma seção de sugestões de atividades para o dito mês, para cada interessado poder organizar e agir diretamente na sua comunidade. Desde seminários e conferências até exposições de arte com temática LGBT estão nessa pauta.

Acredito que a explicação do site para a iniciativa seja bem escrita a ponto de merecer ser reproduzida na íntegra:

Ao longo da história, podemos encontrar muitos exemplos de pessoas que, por uma razão ou outra, se recusaram a obedecer às premissas em relação ao sexo da sociedade em que nasceram. Também encontramos muitas histórias de pessoas que amavam outras de seu próprio sexo. Algumas dessas pessoas eram famosas, alguns deles obscuras. Algumas deles sofreram perseguições graves, outros tiveram mais sorte. Algumas são lembradas pelas contribuições que fizeram para a nossa cultura e sociedade. Suas vidas pessoais são geralmente reprimidas ou censuradas, exceto em publicações especializadas.

Para entender o nosso presente e imaginar o nosso futuro, precisamos primeiro obter clareza sobre nosso passado. Isto é válido para nós como indivíduos, mas também é aplicável para as sociedades. O LGBT History Month é um momento em que podemos explorar e partilhar alguns aspectos ocultos do passado do nosso país, tanto recente quanto remoto. Esta história escondida pertence a todos nós, é parte de nossa herança.

A configuração de personagens históricos: ônus e bônus

A execução dessa iniciativa pode render ótimos frutos. Por um lado, é importante que o grande público desenquadre suas noções e seu conhecimento do que é ser gay ou lésbica, saiba que estes têm uma trajetória particular em busca da garantia de seu – ainda não obtido – lugar ao sol. Isso pode estimular até mesmo o avanço dos direitos e do respeito aos LGBTs.

Por outro lado, é muito importante para os próprios gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros mais jovens tenham fácil acesso a essa história, sintam-se parte de um todo e não condenados a sufocar e morrer fora do aquário dos ditos heterossexuais.

Mas acredito que deva se ter aguns tópicos em mente, pois tarefa de educar em relação a essas figuras é delicada sob vários aspectos. Primeiro, como já mencionado pelos ingleses, é bom que não se categorize as pessoas. É importante que saibam que Leonardo da Vinci se relacionava com outros homens, mas ele não era gay, porque o gay é uma categoria recente. Deixar claro que a sexualidade humana tem várias facetas e, ao mesmo tempo, que ela não precisa se encaixar dentro de alguma delas é uma tarefa difícil.

Em segundo lugar, existe o fator da criação herói. A imagem mistificada e a supervalorização das atitudes podem ser consequências de uma mensagem mal transmitida. O importante é ter em mente que, seja comportando-se sob os moldes do ativismo clássico ou apenas tendo uma sexualidade aberta com naturalidade, todas essas figuras deixaram como lição uma vivência espontânea da sexualidade humana e a mensagem de que é preciso contestar, sempre, toda forma de discriminação ou privação dessa vivência.

Que o Mês da História LGBT sirva não como momento saudosista das antigas formas de ativismo, pois estamos em tempos diferentes e ainda há muito pelo que lutar, mas como injeção de inspiração e ânimo para as reivindicações de hoje e amanhã. E que seja, em algum momento, importada para solo tupiniquim, em cuja história não faltam personalidades admiráveis para se explorar nessa área.


Breves apontamentos para a história da homossexualidade

26 de outubro de 2009

O autor da mais completa obra sobre história da homossexualidade no Brasil, João Silvério Trevisan, costuma dizer que a história dos homossexuais foi sempre escondida, tornada invisível. A reticência em relação à presença de amantes do mesmo sexo em todas as épocas pode ser interpretada diversamente: seja como intencional, advindo da tentativa de normativizar a heterossexualidade, ou como acidental, descaso mesmo, se considerarmos que a história reflete muito o contexto em que é produzida – no ocidente, um contexto em que o sexo entre membros de gêneros diferenciados, e apenas ele, é visto como correto, comum e natural.

Falar de história da homossexualidade consiste em falar de apenas uma faceta da história da sexualidade humana, que é absurdamente rica e plural. Consiste em compreender que as relações sexuais foram encaradas de formas distintas de acordo com cada tempo e sociedade, sem a presença da dicotomia hetero x homo, fruto da mentalidade moderna. Afastemo-nos, por isso, da perspectiva errônea que tenta anacronizar as categorias identitárias, partindo da premissa que “houve gays e lésbicas em todas as épocas”.

Afastemo-nos, também, do ativismo barato, da história com fins. Se vivemos em uma sociedade homofóbica, não é o trabalho acadêmico que vai transformar a situação. Não adianta muito desconstruir as idéias erradas a respeito da trajetória histórica da sexualidade sem propor uma nova leitura para elas. O objetivo aqui não pode ser simplesmente esfregar na cara da academia a existência comprovada do homoerotismo em todos os tempos. Esse trabalho, além de não levar a nada, já foi realizado por outros.

Se queremos inverter a situação descrita por Trevisan, façamos de maneira digna, correta e compenetrada. A formação de uma memória histórica com a qual o ativismo LGBT possa contar e utilizar em suas lutas políticas é um assunto que pode ser próximo, mas deve ser visto como nitidamente distinto. Encaremos a história da homossexualidade não como ferramenta para visibilidade gay, mas para a construção de um conhecimento mais aprofundado da humanidade e de sua trajetória.

Semana da História LGBT no Homomento

Outubro é, oficialmente, o Mês da História LGBT. Se já constam aqui no Homomento duas traduções voltadas para esse propósito, essa semana resolvemos nós mesmos refletir a respeito do tema. Ao longo dessa última semana do mês serão publicadas algumas postagens dentro dessa temática, na tentativa de enriquecer a discussão.


História das marchas em Washington pelos direitos dos LGBT

16 de outubro de 2009

No último domingo, destacamos aqui o discurso pró-LGBT que Obama proferiu em um jantar na véspera da Marcha Nacional pela Igualdade. Na terça, também lembramos que a cantora Lady Gaga marcou presença na manifestação, reafirmando seu apoio pela causa dos homo/bi/transexuais. Mas vale a pena destacar que essa marcha não só lembra os 40 anos do levante de Stonewall, como também resgata um histórico de protestos que remonta ao final dos anos 70, em que pela primeira vez um grande grupo de ativistas LGBT reuniu-se para protestar na capital dos Estados Unidos.

O texto que traduzimos hoje conta a história das marchas em Washington pelos direitos LGBT, fazendo também uma crítica à corporativização, partidarização e perda da força do movimento nas duas últimas décadas. O artigo original é um verbete da Enciclopédia GLBTQ, fonte de consulta que recomendamos a todos aqueles que leem em inglês e se interessam pela história, cultura e personalidades LGBT. É um texto bem longo, mas vale muito a pena a leitura, até por alertar para alguns riscos a que o movimento LGBT brasileiro também está exposto.

Marchas em Washington

O movimento pelos direitos de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros nos Estados Unidos cresceu enormemente durante os últimos 25 anos do século XX, um fenômeno talvez melhor demonstrado pelo sucesso das três primeiras marchas nacionais, realizadas em Washington, DC.

Cada marcha era muito maior e mais diversificada do que a anterior, conforme um número cada vez maior de pessoas se tornaram mais abertas em relação a suas identidades sexuais e de gênero, criando uma ampla gama de subcomunidades GLBTQ.

Uma tendência menos agradável apareceu na quarta marcha: a crescente corporativização do movimento, com ativistas tendo um papel menos marcante na definição dos seus objetivos e prioridades.

[No entanto, a marcha mais recente pode ter revertido essa tendência. Organizada principalmente por jovens ativistas energizados pela aprovação da Proposição 8, que anulou a igualdade no casamento na Califórnia, a Marcha Nacional para a Igualdade de outubro de 2009 voltou-se novamente para o ativismo de base.]

A Marcha de 1979

Marcando o décimo aniversário da Rebelião de Stonewall e vindo logo após a pena tolerante conferida a Dan White pelo assassinato do supervisor de São Francisco e ativista gay assumido Harvey Milk, a Primeira Marcha em Washington pelos Direitos de Lésbicas e Gays aconteceu em 14 de outubro 1979, e foi um evento histórico que reuniu mais de 100.000 pessoas vindas de todas as partes dos Estados Unidos e de outros dez países.

Grupos nacionais de lésbicas e gays inicialmente relutaram em apoiar a Marcha de 1979, temendo que essa manifestação pública não iria atrair muitas pessoas, ou, caso conseguisse tal feito, que poderia gerar uma reação da direita conservadora semelhante à campanha “Save Our Children” de Anita Bryant em 1977. Mas essas preocupações se mostraram exageradas, à medida que a marcha ajudou a solidificar um movimento nacional pelos direitos dos homossexuais.

A marcha também contou com a I Conferência Nacional pelos Direitos de Gays e Lésbicas do Terceiro Mundo, que foi convocada pela Coalizão Nacional de Lésbicas e Gays Negros, uma organização que tinha sido criada no ano anterior por Delores Berry e Billy Jones, e atraiu centenas de afro-americanos e latinos.

A marcha de 1987

Em 11 de outubro de 1987, mais de meio milhão de pessoas (entre 500.000 e 650.000, segundo os organizadores) dirigiu-se à capital para participar da Segunda Marcha Nacional em Washington pelos Direitos dos Homossexuais. Muitos dos manifestantes estavam irritados com a resposta lenta e inadequada do governo para a crise da AIDS, bem como com a decisão da Suprema Corte em 1986 que manteve as leis da sodomia no caso Bowers v. Hardwick.

Com a primeira apresentação do Projeto NAMES – AIDS Memorial Quilt (uma colcha de retalhos em que cada pedaço de tecido traz o nome de uma pessoa morta pela doença), a marcha de 1987 conseguiu chamar a atenção do país para o impacto da AIDS na comunidade gay. Na sombra do Capitólio, um patchwork formado por quase dois mil painéis de tecido ofereceu uma poderosa homenagem para a vida de alguns daqueles que foram perdidos no pandemia.

A marcha também chamou a atenção para a discriminação anti-gay, já que cerca de 800 pessoas foram presas em frente à Supremo Corte dois dias depois, na maior ação de desobediência civil já realizada em prol dos direitos de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros.

A Marcha de 1987 em Washington também estimulou a criação do que ficou conhecido como BiNet E.U.A., e da Organização Nacional de de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros Latinos (Organização LLEGÓ, na sigla original), os primeiros grupos nacionais para bissexuais e latinas e latinos GLBTQ, respectivamente.

Antes da marcha, os ativistas bissexuais distribuíram um panfleto intitulado “Você está preparado para uma Rede Nacional de Bissexuais?” que incentivou os membros da comunidade para fazer parte do primeiro contingente bissexual em uma manifestação nacional. Cerca de 75 bissexuais de todo os E.U. participaram e começaram a lançar as bases para uma organização que pudesse falar sobre as necessidades de pessoas identificadas como bi, e combater a animosidade contra bissexuais que era comum tanto nas comunidades gays e lésbicas como na sociedade dominante.

Em 1987, ativistas GLBTQ Latinos de Los Angeles, Houston, Austin e outros lugares já vinham se reunindo há pelo menos dois anos, discutindo formas de trabalhar juntos para promover os direitos fundamentais e a visibilidade de latinos e latinas GLBTQ. Mas com a AIDS exercendo um impacto desproporcional sobre comunidades latinas de GLBTQ em todos os Estados Unidos, os ativistas reconheceram a necessidade de uma organização nacional e se reuniram na Marcha em Washington para formar o grupo que foi primeiramente chamado Lésbicas e Gays Latinos Ativistas Nacionais (NLLGA, na sigla em inglês). Renomeado como LLEGÓ no ano seguinte, o grupo expandiu-se a partir daí para atender também demandas relativas aos direitos de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros latinos de outros países.

Além da formação de novos grupos nacionais, os efeitos mais duradouros dos eventos desse fim de semana também foram sentidos em nível local. Energizados e inspirados pela marcha, muitos ativistas voltaram para casa e estabeleceram grupos sociais e políticos em suas próprias comunidades, proporcionando maior visibilidade e força para a luta de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros.

A data da marcha, 11 de outubro, tem sido comemorada internacionalmente desde então como o Dia Nacional para Sair do Armário, para inspirar os membros da comunidade GLBTQ a continuar mostrando, como um dos slogans da Marcha proclamou, que “estamos em todos os lugares.”

A Marcha de 1993

A força crescente do movimento ficou evidente seis anos depois, em 25 de abril de 1993, quando quase um milhão de pessoas participou da Marcha em Washington pela Igualdade de Direitos e Libertação de Lésbicas, Gays e Bi. Essa foi a maior manifestação na história dos Estados Unidos naquela época.

Com a derrota da candidatura de George Bush para a reeleição no outono anterior, que deu fim à era Reagan-Bush, o humor da marcha era muito mais festivo e esperançoso do que em 1987.

A marcha de 1993 recebeu uma cobertura da mídia sem precedentes para um evento GLBTQ, incluindo uma reportagem de capa na revista Newsweek e reportagens na primeira página de muitos jornais em todo o país.

A marcha também foi inovadora por receber a aprovação unânime do conselho da Associação Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor – a primeira vez que laços institucionais diretos foram estabelecidos entre o movimento dos direitos GLBTQ e o movimento dos direitos civis – e por explicitamente incluir bissexuais em seu nome (embora o Comitê de Direcção da Marcha tenha votado para acrescentar apenas “bi”, temendo que a palavra “bissexual” poderia sexualizar excessivamente a imagem do evento). Embora as tentativas de acrescentar a palavra “transgênero” ao nome da Marcha tenham falhado, os direitos dos trans foram incluídos na lista de demandas da Marcha.

O fracasso do governo em responder adequadamente à crise da Aids continuou a ser uma preocupação importante, mas outras questões GLBTQ também foram destacadas durante a marcha. O direito de lésbicas, gays e bissexuais de servir nas forças armadas foi um tema especialmente proeminente, já que o presidente Clinton não obteve êxito em cumprir sua promessa de campanha de revogar a proibição.

Além da marcha, os participantes puderam participar em mais de 250 eventos relacionados, incluindo conferências, seminários, protestos, lobby no Congresso, danças, leituras e cerimônias religiosas.

A Marcha de 2000

Enquanto as três primeiras marchas em Washington foram esforços majoritariamente de base, com uma ampla parte da comunidade GLBTQ representada nas comissões organizadoras, a Marcha do Milênio em Washington pela Igualdade, em 2000, foi convocada e dirigida pela Human Rights Campaign e pela Fraternidade Universal das Igrejas de Comunidades Metropolitanas, com uma reduzida consulta inicial dos grupos locais, estaduais e nacionais.

Para tentar apaziguar as críticas de que o evento estava sendo planejado por uma parcela branca, rica, e relativamente integrada à sociedade do movimento GLBTQ, os organizadores da marcha promoveram uma representação da diversidade da comunidade no conselho de diretores. No entanto, permaneceram as críticas acerca do caráter fechado do processo de planejamento, e da falta de uma agenda política e de propósitos coerente em relação aos desfiles anteriores.

O foco parecia estar, principalmente, no entretenimento e nos patrocínios fornecidos por empresas. Devido a estas preocupações, muitos proeminentes líderes GLBTQ se uniram em um movimento de boicote, e algumas organizações GLBTQ se opuseram à Marcha ou posteriormente retiraram o seu apoio a ela, incluindo a Força-Tarefa Nacional de Gays e Lésbicas e o Fórum de Lideranças Negras Gays e Lésbicas.

As disputas resultaram numa Marcha do Milênio menor e menos diversa do que as de 1987 e 1993. Cerca de 200.000 pessoas participaram do comício. Outros eventos principais incluíram um show, uma cerimônia de casamento envolvendo cerca de 1.000 casais de pessoas do mesmo sexo nos degraus do Lincoln Memorial, e um festival de lojas e entretenimento gay-friendly.

A festa pretendia arrecadar fundos para grupos locais GLBTQ, mas perdeu dinheiro, levando a acusações de gastos inadequados e a uma investigação do FBI sobre o roubo de centenas de milhares de dólares. A Marcha do Milênio, assim, terminou da mesma forma que começou: em controvérsia.

Apesar do relativo fracasso da Marcha do Milênio, as marchas em Washington a favor dos direitos das pessoas GLBTQ são uma parte importante do movimento moderno pela igualdade.

Marcha Nacional pela Igualdade em 2009

[A Marcha Nacional pela Igualdade em 11 de outubro de 2009 nasceu da frustração: a frustração com a perda do direito ao casamento gay e outros em consultas populares; frustração com a alegada cooptação do movimento pelos direitos dos homossexuais pelo Partido Democrata, e frustração com o fracasso do presidente Obama em cumprir as promessas que fez em sua campanha de 2008 para a presidência.

A marcha, que foi organizada às pressas em apenas seis semanas, inicialmente sem o apoio das principais organizações de direitos dos homossexuais, foi convocada pelos ativistas veteranos Cleve Jones e David Mixner, mas aqueles que responderam à chamada e fizeram da Marcha um sucesso eram principalmente jovens ativistas que haviam sido impelidos à ação pela aprovação da Proposição 8 na Califórnia, que eles atribuíram a uma falha de visão e estratégia por parte das organizações políticas gays já estabelecidas.

A decepção desses jovens ativistas com a derrota naquela eleição foi agravada pela sua desilusão com o governo de Obama, que parecia distanciar-se das promessas que foram feitas na eleição presidencial de 2008, especialmente o fracasso em por um fim à política Don’t Ask, Don’t Tell, que se proíbe o alistamento de gays e lésbicas no serviço militar.

O contraste entre as atitudes da elite do movimento político gay e dos ativistas de base ganhou destaque pelo fato de que na véspera da Marcha, quando o presidente Obama dirigiu-se ao jantar nacional da Human Rights Campaign, ele foi recebido por piqueteiros que chamaram a atenção para o seu fracasso no avanço dos direitos gays nos primeiros nove meses de sua presidência.

Na chamada da Marcha, Jones e Mixner enfatizaram a necessidade de uma mudança nos rumos do movimento. Jones definiu a prática atual de luta por direitos em nível local como uma estratégia fracassada. “A busca infinita por frações de igualdade, estado por estado, município por município, localidade por localidade não é suficiente”, disse ele ao New York Times.”Até que nossas ações cheguem ao nível federal, cada uma dessas vitórias locais – não importa quão importantes elas sejam – cada uma é incompleta e impermanente.”

Apesar dos detratores, como o congressista Barney Frank, que disse que a marcha foi um exercício de futilidade que só faria pressão nas bases, a Marcha da Igualdade atraiu mais de 250.000 participantes altamente diversificados, mas predominantemente jovens. E já que a marcha foi promovida principalmente por blogueiros através da Internet, o seu sucesso em si era um tributo ao poder da World Wide Web.

O clima em 2009 foi bem menos festivo que o da Marcha de 1993. O foco estava na necessidade de um ativismo de base, o que sugere uma falta de fé nas grandes organizações políticas de gays e lésbicas, vistos por muitos como tendo sido cooptadas pelo Partido Democrata, que em si foi visto como tendo mais interesse em arrecadar fundos junto aos GLBTQ do que na promulgação de leis que promovam a igualdade de direitos.

Julian Bond, presidente da Associação Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor, proferiu o discurso principal. Ele não aliou-se pessoalmente à agenda dos direitos dos homossexuais, como também apontou as continuidades entre o movimento dos direitos civis e do movimento gay e lésbico.

Outros oradores foram Cleve Jones, o cineasta vencedor do Oscar Dustin Lance Black, a atriz Cynthia Nixon, a cantora Lady Gaga, o Tenente e ativista para a revogação da “Don’t Ask, Don’t Tell” Dan Choi, ativista pela legislação dos crimes de ódio Judy Shepard (a mãe do estudante universitário assassinado Matthew Shepard), e David Mixner.

Mixner captou o espírito da Marcha perfeitamente com as seguintes palavras: “Quando as pessoas me dizem para ser paciente, quando as pessoas dizem, ó Senhor, não agora. Tudo o que consigo pensar é em quantas lágrimas mais devem ser derramadas para que alguns políticos ao nosso redor possam descobrir quando será o momento conveniente para se juntar a nós e à nossa luta pela liberdade.”