Merecido

15 de março de 2010

Só uma notinha pra registrar: a revista Detective Comics, um dos títulos mais antigos da DC Comics, foi recém agraciada com um prêmio da GLAAD (não sabe do que se trata? Dê uma olhada aqui). O título, que conta com histórias do mais rentável personagem da editora – o Batman – foi utilizado pelo escritor Greg Rucka para desenvolver a personagem Batwoman, assumidamente lésbica.

Em julho do ano passado eu escrevi uma reflexão sobre LGBTs nos quadrinhos do mainstream norteamericano e cobri a Batwoman e seu roteirista de elogios. Por enxergar Kathy Kane como uma personagem – e não uma “personagem lésbica”, o resultado do trabalho é positivo, por ser totalmente espontâneo.

Que venham outras Batwomans e outros Greg Rucka em diversas mídias! #comicgeek


Caio, o amigo gay da Tina

16 de novembro de 2009

No começo desse ano o criador da Turma da Mônica, Mauricio de Sousa, deu uma interessante entrevista para a Veja. Nela, o quadrinista fala sobre a abordagem de temas mais sérios – como o divórcio, por exemplo – nos seus gibis, seja nos clássicos da Mônica e companhia ou no recente Turma da Mônica Jovem. Quem lê o Homomento já viu meus elogios à Adriana Calcanhotto por tratar crianças com naturalidade e meu recente apelo para uma educação sexual problematizadora: fica até redundante dizer o quanto simpatizei com o seguinte trecho da entrevista.

Acontece que nas casas de hoje se pode conversar sobre tudo: sexo, drogas, violência. Se o pai não puxa esses assuntos, o filho de 5 anos faz isso por ele. É preciso parar de tratar as crianças como seres inferiores, sem senso crítico, sem experiência de vida. Tudo pode virar tema. Não é preciso censurar, apenas deve-se tomar cuidado para usar uma linguagem correta.

O discurso é bonito, mas não paremos por aqui. No restante da entrevista, Mauricio conta como os pais da personagem Xaveco se divorciaram e a situação foi sutilmente introduzida nas histórias, não havendo nenhum caso de reclamação por parte dos pais. Elogios à parte, é necessário lembrar que estamos bastante aquém do tempo em que divórcio era causa para polêmica: não deixa de ser até bastante atrasada essa abordagem do autor. O modus operandi dele fica bem claro em outro momento da entrevista – justamente no que tange à homossexualidade.

Tem gente pedindo para eu criar um personagem gay. Esse tema ainda é muito novo. Mas eu sei que, no futuro, se essa tendência continuar, será natural ter um homossexual na Turma. No meu estúdio, digo que não devemos levantar uma bandeira e ir à frente de uma passeata. Devemos segurar a bandeira quando ela já está passando. Precisamos falar a língua do dia e da hora, mas tomando certos cuidados. Foi com essa fórmula que construí minha carreira.

Mais recentemente, em sua participação no Roda Viva, reiterou, como nos conta o ACapa: “[Personagem gay, só] quando a sociedade estiver, toda ela, aceitando e preparada para isso”.

Poderíamos fazer uma pausa para questionar um pouco as colocações (quando, afinal, a sociedade vai estar TODA pronta e preparada para isso?), mas não é para lembrar dessas declarações que estou escrevendo a postagem. É para falar do novo personagem do gibi da Tina: o Caio.

A primeira aparição do Caio foi no número 6 da revista da Tina, pela editora Panini, lançada em novembro de 2009. O blog Cultureba alerta na manchete – “Caio, o primeiro personagem gay de Mauricio de Sousa”. Sem acesso ao gibi, fui procurar, muito curioso, mais referências à tal história. O Cada um no seu quadrinholança um balde d’água, explicando que fica tudo meio implícito.

Pelo que entendi, a história é mais ou menos assim: a Tina marca um encontro com um amigo misterioso e o namorado dela fica morrendo de ciúmes no decorrer da história. No final, ela apresenta o Caio pro namorado e dá um discurso sobre como é comum homens e mulheres terem amizades sem segundas intenções. O tal Caio ainda arremata, dizendo que é comprometido e dando a entender que é com um rapaz que está presente. Confiram o tal quadrinho, escaneado pelo Cena G.

Como nos conta a Folha, “o assessor afirma que a história não pretendeu ser categórica no lançamento de um personagem gay. Ele levanta até a possibilidade de que ele seja bissexual, no entanto. Ele também assegura que a história e o personagem terá a devida continuidade e encaminhamento”.

Não sei até que ponto a personagem não foi criada pra agradar quem estava pressionando ou até que ponto ela está lá por tratar-se de uma revista de aparente menor visibilidade, mas devo admitir que fiquei positivamente surpreso. Até onde eu sei a questão homossexual está pegando fogo atualmente, então não deixa de ser uma afronta ao próprio método pouco corajoso do Mauricio de falar dos assuntos só depois da discussão em torno deles se abrandar.

Eu poderia até reclamar aqui do quão mal esclarecida está a situação de homossexualidade ali (as velhas migalhas que nos dão nas hqs para ficarmos quietinhos), mas prefiro esperar para ver o direcionamento da história do Caio, por se tratar do gênero infantil, que tem um monte de particularidades. Um pouco de otimismo não faz mal a ninguém, não é? Ou vocês acham que estou encarando com bom humor demais?


Cultura nerd colorida

30 de setembro de 2009

Há muito vem se conversando aqui sobre os guetos e as diversidades dentro da concepção formada e divulgada de “mundo gay”. Por isso resolvi divulgar uma iniciativa que além de válida comprova que os interesses não devem, nem podem, ser generalizados, fato esse que causaria a mutilação da própria comunidade que prega a diversidade.

Falo aqui do Gaylactic Network que foi criado em 1986 na cidade de Boston, nos EUA, visando a divulgação e a discussão em torno das representações LGBT (ou até mesmo a falta delas) nas diferentes mídias, mas o diferencial é que dedicam-se à genêros tipicamente “nerds” como a ficção cientifica, mundos fantásticos e horror.

Hoje a Gaylactic Network já conta com 12 grupos afiliados, dentro dos Estados Unidos (exemplo do Lambda Sci-Fi (DC Area Gaylaxians) em Washington, DC) e também no Canadá (o Gaylactic Toronto Alliance, Toronto, Ontário).

Gaylactic_logo

O intuito de conectar os interessados que partilham interesses parecidos vem funcionando, desde grupos de discussão na internet até a organização de eventos, como o Gaylaxicon.

O Gaylaxicon

gaylaxicon

É um evento anual, realizado desde 1988, e sediado em diferentes cidades do país – já abrigaram o encontro cidades como Philadelphia (1992), San Diego (2004) e Atlanta (2007). Os participantes e organizadores encaram o evento como uma maneira de incentivar, divulgar e discutir assuntos que normalmente não teriam espaço nos convencionais, tradicionais e famosos encontros sobre o tema. Buscam então abordar tanto as publicações e produções independentes que abordam assuntos do interesse da comunidade LGBT, como debates mais especificos, como por exemplo, sobre o que é produzido no mainstream dos quadrinhos, repercussão de seriados com personagens lésbicas (de Xena a L World) e a inclusão de personagens gays nos jogos de video game.

Mesa de discussões do Gaylaxicon 2008 (Bethesda, Maryland)

Mesa de discussões do Gaylaxicon 2008 (Bethesda, Maryland)

Na edição de 2009, que será realizada dos dias 9 a 11 de outubro na cidade de Minneapolis, Minnesota, vemos uma programação plural, que contempla um variado número de interessados, seja na cultura geek, na queer, ou mesmo simples curiosos:

Do Gay Writers Do It Better? : Escritores heterossexuais conseguem abordar assuntos LGBT com sucesso ou necessariamente é preciso ser gay para tratar do assunto?

Lesfic Fantasy – Beyond the Blonde and the Brunette: Após o sucesso do casal Xena e Grabrielle, uma discussão a respeito dos novos rumos das histórias que tangem temas homoeróticos.

Putting the GAY in Games: Uma revisão das aparições de personagens gays nos jogos de video game.

Wonder Woman Appreciation Panel: O que faz a Mulher Maravilha ser um ícone, tanto dos homens quanto mulheres (gays)?

As mesas se dividem nos mais peculiares assuntos e recortes, podendo ser acessado na integra no site do Gaylaxicon. O número de frequentadores vem crescendo desde seu ano inaugural e já são esperadas pessoas de todo o país para a edição deste ano.

Caso os assuntos lhe despertem interesse vale ressaltar que por mais que nos encontremos geograficamente impossibilitados de comparecer, é só mandar um e-mail, ou se comunicar com eles através de algum dos vários meios que eles disponibilizam e ficar sabendo o que foi discutido. Afinal, tecnologia é com eles mesmo.


Chegando ao mainstream dos quadrinhos – Parte 3

30 de julho de 2009

Vale dar uma olhada: o post sobre a homossexualidade do Batman, a Parte 1 do presente texto e a Parte 2 do mesmo.

Junho de 2009. Enquanto na DC Comics a personagem lésbica Kathy Kane ganha destaque em uma das revistas mais vendidas da editora, na Marvel uma acontecimento agita fãs e escritores: na revista X-Factor de número 45 os personagens masculinos Rictor e Shatterstar protagonizaram um beijo gay. Foi uma grande polêmica que suscitou discussões nos mais diversos fóruns, fossem eles de fãs de comics ou de homossexuais ativistas. Aqueles que ficam no meio termo, como leitores de quadrinhos E homossexuais, ou ainda simpatizantes da causa, comemoraram por finalmente ter se concretizado um romance que já era mais que óbvio e, ao manifestar-se apenas implicitamente, começava a beirar o ridículo. Porém Rob Liefeld, desenhista e escritor ícone da década de 90, posicionou-se radicalmente contra a “conversão” de Shatterstar, criação sua.

Independente da intervenção do editor da Marvel no assunto, quando disse que Shatterstar era um personagem da Marvel e não de Liefeld, e da postura desafiadora do escritor Peter David, que já venceu anteriormente um prêmio do GLAAD, é inevitável nos perguntarmos: porque um beijo entre duas pessoas do mesmo sexo ainda é motivo para tanta discussão, em pleno 2009?

Rictor e Shatterstar: só um beijinho

Rictor e Shatterstar: só um beijinho

Sebas Martín, um autor espanhol de hqs gays, arrisca uma resposta. Para Martín, muitas das manifestações homossexuais nas histórias de super-heróis são supérfluas e comerciais. Além disso, as personagens lésbicas vêm ganhando muito mais divulgação do que os gays nesse meio. “Talvez seja porque a homossexualidade feminina contribui para as fantasias sexuais dos homens e comercialmente tem tiragem”, aponta Martín.

O autor não está nem um pouco errado. Somente na DC Comics, nesses últimos anos, notamos saídas do armário de diversas mulheres como Nocaute, Escândalo Savage, Grace Choi, Tormenta, Renee Montoya e a famosa Batwoman. Entre os homens, contamos apenas com Todd Rice, o Sombra, personagem secundário da série Manhunter. O fato de esse único herói gay ter sido escrito por um roteirista abertamente homossexual, Marc Andreyko, é ainda mais preocupante: porque apenas homens gays podem se preocupar com aparições de homens gays?

Grace Choi e Escândalo Savage

Grace Choi e Escândalo Savage

É claramente mais fácil mostrar duas belas mulheres em colants se beijando – ou inserir isso na imaginação do leitor – do que assumir as dificuldades de retratar um homem que goste de homens sem preconceitos (ou mesmo mostrar com profundidade a relação entre duas mulheres). Alan Moore, um dos maiores referenciais de qualquer fã e escritor da nona arte, diz que “os personagens brancos e heterossexuais nunca têm de estar afirmando serem brancos e heterossexuais. Mas porque ser homem heterossexual é a norma, eu acho que muitos dos homens brancos e heterossexuais que estão publicando esses quadrinhos [que tem a participação de personagens LGBT] pensa que todo mundo está em conflito com isso, porque esses personagens NÃO são homens brancos e heterossexuais. Eles não conseguem imaginar pessoas gays no mesmo planeta que todo mundo. Os retratam, então, no mesmo planeta gay especial e não integram uma sociedade mainstream, o que é claramente inútil e sem efeitos”.

Mas Mark Millar, aquele que casou Apollo e Midnighter em 2002, aponta isso como um acontecimento natural: “acho que algumas vezes tem gente procurando manchetes e divulgação desesperadamente. Mas mesmo aí, na vida real normalmente algum tio que era casado e com filhos repentinamente sai do armário e choca a família toda. De maneira similar, acredito, isso poderia ocorrer nos universos Marvel e DC”.

De fato, os dois grandes fantasmas do desenvolvimento gay nos comics vêm se dissolvendo ultimamente. O primeiro deles era a censura. Super-heróis eram publicados para crianças, mas a faixa-etária do público-alvo só cresceu nas últimas duas décadas. Conforme os leitores cresceram os temas passaram a ser mais abrangentes e, porque não, adultos. Dessa forma, a sexualidade passou a ser assunto lidado mais abertamente, e com ela também a diversidade sexual. O segundo grande fantasma poderia ser ainda a revolta de certos pais que não querem que suas crianças entrem em contato com homossexuais de forma alguma, mas as reclamações não vêm atingindo as vendas, logo, sequer chegam aos ouvidos dos editores.

Como em diversos âmbitos da mídia e da cultura, notamos então uma abertura lenta e gradual à comunidade LGBT no mainstream dos quadrinhos de super-heróis. A idéia de uma postura aberta seduz às grandes instituições e editoras, além de levá-las ao topo dos tablóides em segundos, mas devemos estar sempre atentos ao real caráter dessas abordagens. A escritora bissexual Devin Greyson pondera com sabedoria: “eu sei de muitas pessoas podersosas nessa indústria atualmente que são bastante abertas e dedicadas a uma idéia de representação justa – sexual, racial, de gênero, enfim. Mas isso não significa, necessariamente, que elas saibam como fazer essas mudanças ou tenham coragem para tal. Os quadrinhos estão bem atrasados em relação à mídia mainstream na inclusão dos personagens gays, e eu não esperaria que essa indústria lutasse a favor dos direitos civis em tempos próximos. Mesmo assim, a inclusão vem sendo lenta e positiva, e quando as pessoas certas estão nos lugares certos e com a mentalidade certa, a mídia será capaz de realmente dar passos efetivos adiante”.

Estamos colhendo desde já alguns frutos dessas boas casualidades. Nunca tivemos tanto a comemorar, na verdade: o morcego vermelho no peito da Batwoman talvez seja o grande símbolo da comunidade LGBT nos quadrinhos na década de 2000. Esperamos que Greg Rucka seja um referencial não só pela competência nos roteiros e êxitos nas vendas, mas também pela respeitabilidade que dá a qualquer ser humano, independente de sua sexualidade.

Três vivas para a Batwoman

Três vivas para a Batwoman

Contudo, é inevitável dizer que nós, os fãs LGBT desse tão antigo e querido gênero, ainda esperamos sentados pela aparição de um herói masculino de destaque retratado com respeito e profundidade. Como diz um comentário da notícia sobre o beijo entre Rictor e Shatterstar no MDM, “eu só vou me espantar quando algum medalhão sair do armário, dois buchas como esses é só pra cumprir cota de HQ”.


Chegando ao mainstream dos quadrinhos – Parte 2

22 de julho de 2009

Leia a parte 1.

Greg Rucka é um norte-americano de 39 anos. Escritor de livros policiais e histórias em quadrinhos de super-heróis, é hoje em dia reconhecido como um dos mais talentosos no ramo. Foi contratado pela DC Comics no fim da década de 90 e desde então tem lá desenvolvido um trabalho bastante semelhante às suas obras anteriores (como Queen & Country): tramas policiais protagonizadas por mulheres de personalidade forte.

Gotham Central, publicado no Brasil com o nome Gotham City Contra o Crime, foi o título idealizado e escrito pelo autor junto ao também badalado Ed Brubaker. Publicado de 2003 a 2006, conta por um viés realista e emocional a vida cotidiana dos policiais que operam na mesma cidade que Batman e seus supervilões. Recebido muito bem por público e crítica, o título foi vencedor da mais prestigiosa premiação da nona arte: o Eisner Award. Foi em um dos números de Gotham Central que a personagem Renee Montoya foi tirada do armário por um chantagista. Na história intitulada Meia-Vida, que faz alusão à rotina policial e também às complicações pessoais de Montoya, o maníaco Duas-Caras apaixona-se or ela, sabotando sua vida pessoal ao enviar fotos suas com uma mulher para sua família e trabalho.

Sendo tirada do armário em Gotham Central

Saindo do armário em Gotham Central

Ainda que dentro do esterótipo da policial durona, reproduzido repetidamente, Montoya é uma lésbica retratada sem preconceito algum. Ela era a protagonista da série e passou a ser uma das mais visadas personagens da DC Comics: tanto que em 2006, no maxissérie 52, uma das empreitadas mais ousadas do gênero nos últimos anos, Montoya aparece como uma das heroínas principais. 52 foi durante todo o ano o principal título da editora, redefinindo os rumos das histórias de todos os personagens da mesma. Foi nesse título que conhecemos a ex-namorada de Montoya e atual Batwoman: Katherine Kane.

As ex-namoradas Kathy e Renee em 52

As ex-namoradas Kahty e Renee

Criada em 1956 como parte do plano de trazer o feminino com mais peso para o universo de Batman, no intento de afastá-lo dos rumores de homossexualidade, a Batwoman original sempre teve um lugar mais que periférico nas histórias, caindo enfim no esquecimento em 1979. Foi essa irônica revitalização por Greg Rucka que rendeu-lhe um lugar em veículos de comunicação de todo o mundo: uma super-heroína lésbica vinha à luz. Certamente não foi a primeira, mas a singularidade de sua importância é apontada pelo próprio escritor: “ela está usando no peito um dos mais famosos ícones da cultura pop de todos os tempos – aquele pequeno morcego traz bilhões de dólares para a Warner Bros”.

Kathy Kane é uma socialite de Gotham que é feminina, sensual e discreta. Durante as noites, luta contra o crime como a Batwoman. Autônoma, tomou para si o símbolo do pequeno morcego e o nome sem o consentimento de Batman, encontrando porém aceitação de seu trabalho por Dick Grayson, o primeiro Robin. Teve participação pequena, mas essencial, em 52, que ao acabar deixou toda uma mídia ansiosa por seu retorno.

Em junho de 2009, depois de uma série de rumores e confirmações, sai a Detective Comics número 854. Esse título, em vigor desde 1937, foi palco da estréia de Batman e da grande maioria de seus vilões. É um dos mais clássicos títulos dos quadrinhos, e agora, sob os roteiros de Greg Rucka e os desenhos de um dos mais criativos artistas do ramo no momento (senão o melhor), JH Williams III, vai por um ano contar as histórias da Batwoman. Williams diz que está muito feliz por ter um personagem homossexual estrelando a série, e que seu lesbianismo será trabalhado de maneira natural, como apenas mais um dos aspectos de sua personalidade.

Ilustração de JH Williams III para a capa de Detective Comics #854

Ilustração de JH Williams III para a capa de Detective Comics #854

Um escritor de grande competência com as melhores intenções fez com que duas personagens lésbicas ganhassem status em meio à mais tradicional editora de quadrinhos, que em suas histórias dava pouca abertura a homossexuais por medo de perder vendas e o apoio de seu público em parte preconceituoso. Por essas razões e também por seus primorosos roteiro e arte, Detective Comics #854 já é história.

Mas qual o significado desses notáveis avanços? Quais são os pontos bons e ruins, o que temos a comemorar e a reclamar no que diz respeito aos LGBT nos veiculados comics norte-americanos? Algumas reflexões conclusivas na terceira e última parte desse texto, pelo mesmo bat-autor, no mesmo bat-blog.


Chegando ao mainstream dos quadrinhos – Parte 1

9 de julho de 2009

O tema das personagens homossexuais dá muito pano pra manga. A respeito das novelas brasileiras, por exemplo, temos no Homomento já dois posts sobre o assunto (aqui e aqui), contando mais decepções do que alegrias até agora.

No campo mainstream dos quadrinhos, no entanto, arrisco dizer que a presença de gays e lésbicas já é um pouco mais notável e digna. Desde Watchmen (1986) e Sandman (1988-1996), dois dos maiores referenciais dessa forma de arte, personagens assumidos tem surgido aqui e ali. Porém, seria otimista demais dizer que existe ampla aceitação no meio. Ao ler um site como o Gay League, por exemplo, que garimpa personagens LGBT na nona arte e todas as informações possíveis sobre cada um deles, percebemos que talvez seja um pouco cedo para comemorar tanto: ainda estamos lidando com migalhas esparsas e não com respeito e convivência reais. De qualquer forma, vale a pena conferir o trabalho dos caras, que conta ainda com fantásticas linhas do tempo mapeando as aparições de personagens LGBT nos quadrinhos.

Na década de 2000, bons autores de várias editoras incluíram personagens homossexuais em suas histórias. De aparição em aparição, vamos notando uma presença mais maciça e mais consistente: na aclamada revista Authority ocorre o primeiro casamento gay num título de altas vendas e divulgação – e melhor ainda, é entre dois dos personagens principais da série. Criados por Warren Ellis em 1999 casados por Mark Millar em 2002, Apollo e Midnighter são referências óbvias a Superman e Batman, visual e caracteristicamente: o primeiro tem super-força, voa e drena energia do sol enquanto o segundo destaca-se pela inteligência em análise e combate. Eles representam um grande avanço porque Warren Ellis e Mark Millar são dois dos melhores escritores do gênero hoje em dia, admirados massivamente por público e crítica, e porque Authority ocupa um lugar na prateleira de qualquer leitor de quadrinhos atento aos lançamentos de qualidade no gênero dos super-heróis.

O casamento de Apollo e Midnighter, em Authority #29

O casamento de Apollo e Midnighter, em Authority #29

Authority, porém, por mais que seja sucesso de vendas, tem um caráter mais alternativo e adulto do que qualquer outra coisa; o gênero dos super-heróis ainda precisava ser penetrado pelos LGBT em sua essência, em seus clássicos de maior circulação. Estou falando de peixes grandes como X-Men, Homem-Aranha, Batman e Superman. No próximo post, um pouco da história de Greg Rucka e de como uma personagem abertamente lésbica chegou a, em junho de 2009, protagonizar as histórias de uma das revistas mais antigas e mais vendidas de todos os tempos: a Detective Comics.


Sobre a homossexualidade do Batman

24 de junho de 2009

Uma das discussões mais polêmicas entre os fãs e leitores de quadrinhos (e mesmo os que não o são, pois trata-se de um personagem estupidamente famoso) é aquela a respeito da sexualidade de Bruce Wayne, o Batman. Mas porque esse tópico, levantado em 1955 por Fredric Wertham no famoso Seduction of the Innocent, se mostrou tão pertinente a ponto de ser levado adiante por tanto tempo?

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Batman, em suas primeiras aparições na Detective Comics em 1939 e meados dos anos quarenta, era um vigilante solitário que combatia ferozmente o crime. Bob Kane utilizou no homem-morcego alguns conceitos de herói que cativaram o público, alcançando altas vendas e rendendo mais tarde inclusive uma série de televisão que potencializou sua fama, imortalizando-o. Por algum motivo que merece uma boa pesquisa, talvez até ironia dos roteiristas e desenhistas, em alguns momentos já nos quadrinhos e posteriormente na série de TV havia insinuações a respeito da sexualidade do cruzado de capa: pequenas tiradas que questionavam sua relação com o ajudante Robin, principalmente.

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Para alguns entusiastas, fossem eles leitores ou não, a transfiguração da figura de um herói tão representativo em um homossexual a partir dessas evidências tornou-se interessante e útil, uma maneira de lutar contra o preconceito através de novas perspectivas de idéias já conhecidas pelo grande público. Certos fãs reagiram e reagem até hoje a tal ponto de vista de maneira agressiva, “defendendo a dignidade” de seu personagem favorito através de argumentos pouco convincentes como o de que o Bruce seria, pelo contrário, o maior garanhão dos quadrinhos e de que isso consta em muitas das histórias publicadas. É natural que a DC Comics, apavorada diante da mácula de um de seus hits, se preocupasse desde então em afirmar a heterossexualidade do Batman; se antes só existia um garoto para acompanhá-lo em suas aventuras (criado inclusive para agradar ao público infantil), agora uma Batwoman e uma Batgirl foram concebidas justamente com o intuito de aproximar dele a figura feminina, antes presente apenas através de vilãs traiçoeiras. O próprio Dick Grayson, o primeiro Robin, hoje em dia é retratado nas revistas como um jovem extremamente atraente e cafajeste com as mulheres, comportamento que não deixa dúvidas acerca de suas aspirações no âmbito do sexo.

O problema nessa tão utilizada argumentação é o fato de que não há uma verdade absoluta em relação a esse herói, e creio que seja correto dizer que não há em relação a nenhuma obra/ícone/elemento cultural. Se os próprios elementos da história dele foram sendo alterados através do tempo para agradar ao público, porque insistir que existe uma essência real para o Batman, seja ela homo ou heterossexual? Não importa se Bob Kane diz que ele é hetero, pois se apenas ele tivesse trabalhado com sua criação, com certeza esta não seria uma lenda hoje: os maiores clássicos de Batman não foram escritos por ele. Tampouco conta o que qualquer outro autor diz, visto que o Batman não é mais propriedade nem mesmo da DC Comics, detentora de seus direitos autorais; ele está aquém de cronologias, arcos, especiais, teses de doutourado ou quaisquer outras formas de aprisionamento e definição. Ele é uma argila, um diamante bruto que está sempre no ar esperando para ser trabalhado e analisado por diferentes prismas, por quem quiser. Hetero, homo, com uniforme preto, azul, cinza, com Robin, sem, matando, sendo contra o assassinato. Que seja respeitado e aproveitado tal como é, um grande personagem com enorme potencial para divertimento e reflexão, e não um canalizador de frustrações, fantasias ou lutas relacionadas à sexualidade.

(obs.: a leitura meta-linguística do escritor Neil Gaiman sobre a recente morte do personagem Bruce Wayne foi publicada recentemente e traz exatamente esse ponto de vista a respeito da personagem, para orgulho do autor do presente texto, que escreveu-o meses atrás. Vale a pena procurar na internet: a história leva o nome de “Whatever Hapenned to the Caped Crusader?”.)

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