Uniões homoafetivas e o reconhecimento do Estado

26 de agosto de 2009

Ainda é cedo para comemorar, mas tem sido boa a repercussão das ações que questionam, no STF, o não reconhecimento das uniões estáveis homoafetivas. Embora a ação proposta por Déborah Duprat em sua curta porém ousada permanência no cargo de Procuradora-Geral da República, a ADIN 4.277, seja a mais comentada, é bem provável que a primeira a trazer resultados práticos seja a ação que originou essa movimentação toda, a ADPF 132, proposta pelo governo do Estado do Rio de Janeiro para garantir aos parceiros dos servidores estaduais homossexuais os mesmos benefícios a que os cônjuges dos funcionários heterossexuais têm direito.

O relator dessa ação, o ministro do STF Carlos Ayres Britto, realizou uma pesquisa de jurisprudência para analisar a ação dos juízes em relação às uniões homoafetivas. O resultado dessa busca, divulgada pelo jornal Estado de São Paulo nesse sábado, comprova com números a falta de coesão na Justiça em relação ao assunto. Ayres Britto sustenta que as uniões estáveis entre homossexuais só foram reconhecidas como tal pelo Judiciário de nove Estados. Nas demais unidades da federação, ou não há casos registrados, ou predominou o entendimento de que aí não há união estável, e sim união de fato – ou seja, retira-se a afetividade de cena e o que resta não passa de uma sociedade entre duas pessoas.

De acordo com a matéria, o julgamento para essa ação está previsto ainda para o segundo semestre de 2009. Além disso, ainda segundo o Estadão, o STF pretende editar uma súmula sobre as uniões homoafetivas. Esse tipo de regulamentação é uma espécie de palavra final dos ministros – a partir dali, a decisão tomada se torna a posição oficial dessa corte, tornando impossível qualquer outro entendimento. Afinal, o tribunal recebe o nome de Supremo por algum motivo: não há como recorrer de suas decisões.

Se, no caso da ação dos servidores cariocas, o STF conceder o reconhecimento, essa decisão vale somente para o caso em questão (embora gere jurisprudência para outros). No caso da ação proposta por Déborah Duprat, o efeito também é um pouco limitado: embora a interpretação defendida pelo STF valha para todos os casos, os juízes de primeira instância ainda serão independentes para julgar de acordo com suas convicções. Quando o processo finalmente chegar ao Supremo, após anos de lengalenga judicial, aí, sim, fica valendo o entendimento dos ministros. Com a edição de uma súmula, acabam-se as dúvidas. O que o STF definir passa a ser a única interpretação possível da lei nesses casos.

E é exatamente aí que reside o maior perigo. Se o Supremo entender que não há fundamento legal para que as uniões entre pessoas do mesmo sexo sejam consideradas uniões estáveis, de nada adiantará entrarmos na Justiça pedindo o reconhecimento da homoafetividade.

A princípio, no entanto, não há motivo para pânico. A Advocacia-Geral da União (AGU), representante dos interesses da união, foi consultada no processo e se declarou favorável ao reconhecimento das uniões estáveis homoafetivas. Nesse parecer (para quem não se incomoda com juridiquês, vale a pena ler a íntegra), a AGU afirma que a união entre pessoas do mesmo sexo é “uma realidade para qual não se pode fechar os olhos”, e que a negação desse direito normalmente se apoia em “argumentos totalmente vinculados a visões de mundo estereotipadas, intolerantes e preconceituosas, que devem sim ser respeitados, mas não devem servir de parâmetro para uma razão pública”.

Assim como a Procuradoria-Geral da República fez na ação, a AGU defendeu que o não reconhecimento das uniões homossexuais fere a Constituição, por desrespeitar os princípios da dignidade humana (o embasamento de todos os outros direitos), da liberdade (incluindo aí a liberdade de orientação sexual), da privacidade (pois dividir a vida com alguém, independente de quem seja, é uma decisão privada, assim como a identidade sexual de cada um não cabe a ninguém), da igualdade (todos são iguais perante a lei, sendo que esta deve minimizar as desigualdades) e da segurança jurídica (a garantia de acesso à Justiça e de respeito aos direitos do cidadão).

Esse parecer da AGU foi bastante comemorado, pois não chega a ser comum ver o Estado tomando partido tão claramente acerca das uniões homossexuais. Mas essa não foi a primeira manifestação de reconhecimento estatal da homoafetividade. Em 2004, o TSE (à época, presidido por Gilmar Mendes, hoje presidente do STF) impediu que a companheira da então prefeita de Vizeu Pará (PA) concorresse à Prefeitura, aplicando a mesma lei que impediria a candidatura do cônjuge heterossexual de um ocupante de cargo executivo. Na Contagem da População realizada pelo IBGE em 2007, aparece pela primeira vez a resposta “cônjuge/companheiro do mesmo sexo” para a pergunta “qual sua relação com o responsável pelo domicílio?”. Além disso, a Portaria Normativa MPOG/SRH nº 01 de 27/12/2007 permite que os servidores públicos vinculados ao poder Executivo federal incluam como dependente em seu plano de saúde “o companheiro ou companheira de união homo-afetiva, comprovada a co-habitação por período igual ou superior a dois anos”.

Também não é a primeira vez que o tema das uniões entre pessoas do mesmo sexo chega ao Supremo: em 2006, o ministro Celso de Mello arquivou uma ação semelhante à ADIN 4277, por entender que ela questionava um artigo que não estava mais em vigor. Ainda assim, Mello destacou a importância do reconhecimento legal desses relacionamentos em seu parecer como relator do processo.

Em reportagem do site A Capa sobre o parecer da AGU, o advogado e ativista Paulo Mariante elencou cinco possíveis votos a favor do reconhecimento das uniões homoafetivas: “Temos a ministra Ellen Gracie, a Carmem Lucia, Carlos Ayres Britto, Celso de Mello e até mesmo o Gilmar Mendes”. A essa lista, eu acrescentaria também o nome de Ricardo Lewandowski, saudado como simpatizante à época de sua nomeação como ministro do STF, e que já declarou ser a favor da união civil entre homossexuais. Com isso, seria possível uma vitória apertada: seis votos (de um total de onze ministros) é o mínimo necessário para que o STF decida uma questão.

Quando o STF define uma posição sobre um assunto em que a lei deixa lacunas, há quem critique o fato de que esse órgão não deveria “legislar”. Devemos lembrar, contudo, que essas lacunas existem porque o Legislativo, a quem cabe a tarefa de redigir as normas, tem fugido à sua responsabilidade quando o assunto são os direitos dos homossexuais. Seja porque as pressões religiosas atravancam o debate (caso do PLC 122/2006, que criminaliza a homofobia), seja porque os homossexuais são deixados de lado na hora de aprovar as leis (o que aconteceu com a nova Lei de Adoção, que ignorou as relações homoafetivas), seja porque o preconceito ainda tenta impor novos retrocessos (como no caso do projeto do deputado federal Paes de lira, que pretende proibir o casamento entre pessoas do mesmo sexo).

De qualquer forma, se determinar que o não reconhecimento das uniões homoafetivas é inconstitucional, o STF não estará legislando. Estará cumprindo o seu papel de guardião da Constituição, por fazer valer os princípios que afirmam que todos os brasileiros são igualmente cidadãos e merecedores de respeito.


O projeto inútil do substituto de Clodovil

5 de junho de 2009

Na coluna de Mônica Bergamo na edição de hoje da Folha de São Paulo (disponível aqui para assinantes) – que informa que haverá testes gratuitos de HIV em SP na semana que antecede a Parada, agendada para o Domingo que vem (assunto para um próximo post) – o que chamou mais a atenção desta blogueira foi, de fato, a breve entrevista concedida pelo deputado federal Jairo Paes de Lima (PTC-SP). Como bom representante do partido que traz o cristianismo até no nome, o coronel – que assumiu a vaga de Clodovil Hernandes na Câmara dos Deputados, assim que o apresentador de TV faleceu, no início desse ano – defende a criação de um projeto de lei que proíba explicitamente o casamento homossexual. Para quem não tem acesso à área restrita para assinantes da Folha, colo aqui a entrevista do deputado.

CORONEL LIRA

“Não há como perpetuar a espécie de outro jeito”

Substituto do estilista Clodovil Hernandes, morto em março, na Câmara dos Deputados, o coronel Jairo Paes de Lira (PTC-SP), 56, criou com um colega um projeto contra o casamento gay. “Nos termos constitucionais, nenhuma relação entre pessoas do mesmo sexo pode equiparar-se ao casamento ou à entidade familiar”, diz o texto da proposta. Ele falou à coluna por telefone.

FOLHA – Por que o projeto?

CORONEL JAIRO PAES DE LIRA – É um pedido de declaração mais explícita na lei para reafirmar que o casamento acontece entre um homem e uma mulher. Nossa Constituição não abraça os chamados “casamentos homossexuais”. Além disso, defendo a tradição cristã.

FOLHA – Mesmo que nem todos os brasileiros sejam cristãos?

CORONEL LIRA – De modo geral, as religiões veem o casamento como união entre homem e mulher. Não há modo de perpetuar a espécie de outro jeito. Mas não sou contra parcerias civis, que na prática dão os mesmos direitos.

FOLHA – Clodovil aprovaria a ideia?

CORONEL LIRA – Em vida, ele disse que não aceitava o casamento gay. No final do mandato, apresentou um projeto a favor. Ele era uma figura do jet-set, completamente diferente de mim, mas eu o respeitava. Respeito a escolha de cada um, só não quero isso para mim, meus filhos e as futuras gerações.

Numa consulta rápida ao portal da Câmara, constato que a ironia da coisa vai além do fato de Paes de Lira, um cristão homofóbico, ter assumido a vaga de um homossexual assumido. Na realidade, o projeto de lei de Lira foi apensado (ou seja, ele tramita conjuntamente) ao PL 580/2007, de autoria do próprio Clodovil Hernandes, que pretendia regulamentar as uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo (a íntegra do projeto de Clodovil e sua justificativa podem ser lidas neste pdf).

Vários pontos poderiam ser destacados na ação do deputado Paes de Lira. Eu poderia salientar, por exemplo, o fato mais óbvio: ele não ocupa o cargo por ter sido escolhido por uma parcela significativa da população para defender seus interesses religiosos, embora use esse argumento na justificativa de seu projeto. Paes de Lira está lá porque milhares de eleitores votaram em uma pessoa, um apresentador de televisão famoso e homossexual, sem preocupação com o caráter proporcional de nosso sistema eleitoral, que fortalece os partidos (e aí cabe a crítica a Clodovil Hernandes por escolher logo um partido cristão para lançar-se candidato, e também cabe discutir qual a lógica de um partido cristão acolher um parlamentar que não segue sua ideologia).

Um outro argumento importante para essa discussão é o fato de que a Constituição e o Código Civil não regulam os casamentos religiosos, e sim os casamentos civis. O casamento religioso, embora não seja realizado por um ente público, é reconhecido pelo Estado como sendo uma união, mas não é essa a reivindicação dos LGBT quando falamos em casamento. Quando discutimos o casamento homossexual, estamos falando de um direito civil. Se porventura o casamento entre pessoas do mesmo sexo for aprovado, e espero que seja, isso não dá aos homossexuais o direito de casarem na Igreja, e sim de casarem no civil. Pode ficar tranquilo, senhor deputado. O seu Deus, seja lá qual for, continuará sendo a autoridade máxima dentro de sua Igreja, seja ela qual for, e nenhum padre vai precisar negar seus valores cristãos. O Estado é laico, senhor deputado, sempre é bom lembrar.

Mas o que me choca nesse projeto é sua completa inutilidade. Não estou exagerando: ele é inútil mesmo, comprovadamente desnecessário, e pelo visto o deputado Paes de Lira não tem conhecimento das leis e valores que procura defender. Se lesse um pouquinho de direito de família, o coronel do PTC saberia que o Código Civil já traz, em seu artigo 1.514, uma manifestação clara de heteronormatividade: “O casamento se realiza no momento em que o homem e a mulher manifestam, perante o juiz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal, e o juiz os declara casados.”.

Mesmo ignorando isso, o PL 5.617/2009 continua inútil: em conjunto com as propostas de Clodovil e de Lira, tramita também um outro projeto de lei para regulamentar as uniões estáveis (não casamentos, que fique claro) entre pessoas do mesmo sexo, de autoria de José Genoino (PT-SP) e outros deputados da Frente Parlamentar pela Livre Orientação Sexual (o nome de todos os autores está na abertura da íntegra do projeto). José Paes de Lira não precisaria nem ler a íntegra da proposição. A ementa do PL 4.914/2009 tem um texto bem claro, que poderia muito bem afastar as preocupações do deputado cristão: “Aplica à união estável de pessoas do mesmo sexo os dipositivos do Código Civil referentes a união estável entre homem e mulher, com exceção do artigo que trata sobre a conversão em casamento.