Eles contra elas

Há mais de mês aconteceu o Dia Internacional da Não Violência Contra a Mulher. Aí a Lola do Escreva Lola Escreva, um dos meus blogs favoritos, fez um post especial para os homens. Com o título “Homem, faça a sua parte”, ela sugere algumas coisas que os homens poderiam fazer para participar da luta contra o machismo.

A blogueira explica que logicamente não são todos os homens que estupram e agridem mulheres, mas que essas agressões são feitas por homens. E que esse assunto, o da violência contra a mulher, deveria dizer respeito a todos, independente do sexo. Não precisa ser agressor nem agredido pra se envolver nessa luta e querer que a situação acabe, logo, homens que não agrediram e mulheres que não foram agredidas podem e devem participar.

Aí vêm algumas dicas de coisas que podem ser feitas por homens que querem participar desse conjunto de práticas que engloba a luta feminista.

Permita-me algumas sugestões: se você tiver um blog, escreva sobre isso. Escreva sobre quando você começou a autoanalisar o seu sentimento de posse. Escreva sobre o que viu de desigual no relacionamento entre os seus pais. Escreva sobre o ciúme doentio que você sentiu aquela vez da sua namorada. Escreva quando descobriu que as mulheres merecem respeito.

Copiado esse trecho, preciso fazer alguns comentários.

Pra começar, quero questionar essa ideia de que os homens “também” podem se interessar pelo feminismo. Tenho certeza que a Lola sabe que ser mulher não significa ter interesse automático por aquele conjunto de coisas que se entende como “emancipação feminina”, mas a premissa do texto não deixa isso claro. A leitura me fez remexer na cadeira porque parecia que bom, nem precisamos falar sobre como o feminismo é caro às mulheres, agora vamos aos homens.

O machismo é um sistema simbólico que não foi deliberadamente criado. Não houve um momento em que homens se opuseram a mulheres e submeteram elas, contra a sua vontade, e desde então elas vêm umas sendo submissas e outras reparando o quanto essa situação é horrorosa. Não é dualista, mas totalmente complexo e enraizado culturalmente. O feminismo, no entanto, se organizou em torno de mulheres, e vem sendo caracterizado como “luta feminina”. Se cria aí essa visão polarizada que é extremamente problemática.

Quando um marido oprime a esposa de alguma forma não estamos falando de uma situação em que um homem dominador e possessivo violentou uma esposa submissa que, se pudesse, estaria numa relação diferenciada. A relação já se estruturou assim desde o começo porque os dois quiseram. Tanto o homem escolheu uma parceira-objeto quanto a mulher procurou um parceiro que a objetificasse, e essas escolhas foram condicionadas e impostas a eles desde que nasceram.

A sugestão de Lola é que homens esclarecidos falem sobre o momento da quebra, em que repararam que não é legal ter o sentimento de posse, desrespeitar as mulheres, sentir ciúme doentio e outras coisas mais. Que eles colaborem com relatos que possam ser lidos por machos chauvinistas, que quem sabe possam se sensibilizar.

Mas acontece que esses homens sensíveis de Lola vivem em um mundo em que a grande maioria das mulheres busca por objetificação, luta por submissão e reafirma diferenças categóricas entre os sexos que acabam sempre diminuindo a mulher. Pra dar um exemplo: há alguns meses falei sobre um livro chamado “Cuidado! Seu príncipe pode ser uma Cinderela” que é um manual para a mulher identificar se o seu marido é um gay enrustido que quer manter as aparências. Os parâmetros? Se ele for muito carinhoso, se vestir bem, tiver uma boa relação com a própria mãe, ele é gay e você está sendo enganada. O livro diz à mulher o que NÃO se esperar de uma relação heterossexual, ou seja, carinho, companheirismo, etc. E, que surpresa: foi escrito por duas MULHERES, visando “ajudar” MULHERES.

Esses dias li um tweet dizendo que acusar as mulheres de serem perpetuadoras da pior espécie de machismo seria a configuração de um neomachismo, um machismo dois ponto zero. Realmente é de uma pobreza enorme desculpabilizar homens, mais ou menos como aquela premissa escrota de que “são os negros que são racistas consigo e se excluem”. Mas não é dentro desse esquema argumentativo que quero me inserir.

Quero dizer mais ou menos o que falei no meu post anterior, só que trazendo isso pro feminismo, porque é importante. Não se trata de vítima contra opressor, mocinho contra bandido. Não são mulheres (e homens esclarecidos) lutando contra homens machistas. São pessoas que pensam uma coisa se opondo a pessoas que pensam outra coisa. É muito ingênuo endereçar “também” aos homens os objetivos feministas, como se qualquer mulher entendesse o que são estes e se interessasse por eles. Qualquer mulher está apta a perceber que existe essa violência específica, mas não a perceber que as origens dessa violência são simbólicas e perpetuadas em todos os cantos diariamente. E é essa percepção, na minha opinião, que difere uma mulher feminista de uma mulher que se diz feminista.

Uma coisa que me chateou bastante em outro texto da Lola, e eu até reclamei pra ela no twitter sem obter resposta, foi ela dizer que tanto mulheres quanto homens podem sofrer violência sexual, mas apenas homens a cometem. Isso não é verdade: mulheres podem abusar de mulheres, e de homens também. E é um absurdo, uma falta de sensibilidade dizer o contrário. Eu não sei em que momento essa obviedade escapou da Lola, mas acho que foi quando ela começou a colocar as mulheres no pedestal de vítimas.

Esses dias vinha relendo os textos da época em que o Homomento não era um blog semimorto e bissexto e percebi que a grande maioria das nossas críticas foi tecida em relação à militância/mídia/comunidade gay. Nunca nos interessou pressupor um todo LGBT organizado para, em cima disso, partir para as críticas do “mundo hetero”. Reparamos que muitas vezes práticas que se pretendem inclusivas entre os LGBTs são normativas, machistas, racistas e escondem uma profunda decepção interna por não serem heterossexuais. Não estou falando da “homofobia internalizada”, esse que se tornou um recurso ativista gay para falar de qualquer homossexual que não se comporte como a militância pede, mas de práticas celebrativas e enquadradoras como o já analisado Mister Gay Brasil.

Adoraria pensar que lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros partilham todos do mesmo desejo emancipatório, e que se assumir significa ser fazer algo de diferente e efetivo para os gays, independente do contexto e da forma como vai ser administrada essa homossexualidade escancarada. Adoraria escrever longas cartas para meus amigos heteros “esclarecidos”, incitando-os a participarem da luta pelos gays. Mas não divido o mundo em preto e branco e sei que o buraco é sempre, sempre mais embaixo.

8 Responses to Eles contra elas

  1. Lola disse:

    Pensei que estivesse claro no meu texto: estupro, violência doméstica, etc são vistos como “assuntos femininos”, tratados como nichos, temas que só interessam às mulheres. E isso é um absurdo, porque é colocar toda a responsabilidade em mudar essa realidade num só gênero, como se os homens não tivessem nada com a história. Em alguns países começam a aparecer, ainda que timidamente, grupos de reflexões de homens. A questão geralmente é: como eu, homem não-agressor, posso ajudar a diminuir a violência contra a mulher? Esses grupos de reflexão são muito importantes, inclusive pra luta GLBT, já que machismo e homofobia sempre caminham juntos.
    Abraço.

    • São vistos por quem como “assuntos femininos”? E se são, uma visão totalmente distorcida, porque entrar na lógica deles pra querer responder? Não seria mais eficiente responder com uma lógica diferente? Sabendo que estupro e violência doméstica NÃO SÃO assuntos femininos, não seria legal promover o debate entre TODOS, não restringindo a discussão a uma ilha de “não agressores”? Como disse a Nathalia ali embaixo, o sujeito do feminismo não tem de ser a mulher, porque os objetivos gerais do mesmo tangem a todos.

      A tua insistência na reafirmação de categorias como homem e mulher revela um apego à lógica sexista. Dizer que mulheres são incapazes de agredir sexualmente é o fruto mais absurdo disso. Mas essa parte do texto, claro, tu não comentou.

    • TR disse:

      É para que as mulheres que veem, criem coragem e parem de apanhar caladas. Não deixem seus filhos virarem animais machistas igual ao pai e faça da vida de outra mulher um inferno. Ou achas mesmo que o homem machista tem interesse em participar desses assuntos?. Infelizmente a responsabilidade caem toda sobre as mulheres e uma pequena parcela de homens não machistas dispostos a fazer algo incomum do que aprenderam.

  2. Andreia disse:

    Como assim mulher não comete violência sexual?

    http://gazetaonline.globo.com/_conteudo/2009/04/79099-cabeleireira+transforma+assaltante+em+escravo+sexual+na+russia.html

    Além do mais, vivemos num mundo onde, na verdade, o mais forte oprime o mais fraco. Às vezes calha de o mais forte ser a mulher, e aí vemos aqueles casais onde o homem é submisso à mulher e sofre diversos abusos, talvez não físicos, mas psicológicos.

    Acho que, mais do que lutar pela mulher, pelo homem, ou pelo homossexual, deveríamos lutar pelo fim dessa mania do mais forte submeter o mais fraco. Não importa quem é o mais forte ou o mais fraco, gênero, cor ou sexualiade não influencia.

    • TR disse:

      Mas a diferença é brutal, principalmente por homens acreditarem ser superiores as mulheres. “_ Há mais isso tá mudando!”. Muito pouco, na frente das mulheres os homens disse que o mundo é delas, que as mulheres são tão inteligentes quanto eles e que merecem respeito. Mas é entre homens que se vê como a maioria dos homens se acha superior as mulheres. Homem é homem e para outros homens a palavra de um vale mais do que e uma mulher. Vejo isso até nos homens que se dizem modernos e não machistas. Tu não fazes ideia de como a Maioria se contorceu de indignação pela lei Maria da Penha. Até os ditos moderninhos achavam desnecessária. E em termo de emprego, ainda acham que pra mulher isso é só um passatempo. http://www.casadamaite.com/node/14640
      Todos merecem respeito mas as mulheres ainda estão muito longe de conseguir isso efetivamente.

  3. César Munhoz disse:

    Tô impressionado com os textos do site. Parabéns, virei fã.

  4. Nati disse:

    Acho que junto com tudo que tu colocou, está a questão dos objetivos gerais do feminismo – que, para mim, se centram de uma forma ou de outra na perspectiva e na aspiração de mudança das concepções e relações de gênero na sociedade, de uma maneira mais ampla e que favoreça a diversidade. Nesse sentido, voltamos à velha discussão do “sujeito do feminismo”…

    Enfim, acho que tu devia continuar atualizando mais o blog.

    Beijo.

  5. Lucianaiana disse:

    Tem mais, a violencia da mulher é contra os homens é muito psicologica , quantos casos a gente sabe de caras que estao com mulheres que tornam suas vidas um pesadelo emocional, economico etc. Acho que tudo isso de homem, mulher, gay, trans é tudo babaquice, todos somos HUMANOS, e discordo do binario de genero ser transformado em um trinario, ou quarternario etc. Acho que essa ideia de ter nomezinhos vem com a ideia ruim de DEFINIR, e filosoficamente aquilo que define delimita o que é e EXCLUI o que “nao é”. O problema dessa dicotomia é quando voce quer remover barreiras, que eh o caso, ao inves de criar mil definicoes de genero e papeis e opcoes sexuais etc, deveria ser simples… somos HUMANOS somos todos a mesma coisa em termos de genero ate o 4o mes do nascimento . Dai existe uma ESCALA cujos extremos sao sim, venus e marte. Mas qualquer individuo pode se inserir em qualquer ponto dessa escala e isso pode se mover pra um lado ou para outro. Feminismo foi um mal necessario que veio de uma sociedade e de um tempo-espaco socio cultural muito diverso do nosso. A luta nao é para mulheres ou homens em qualquer ponto da escala de cinzas, É a luta do ser humano contra a violencia perpetrada por QUALQUER um a QUALQUER outro. Todos nos que queremos acabar com isso, seja seu foco mais pra violencia contra golfinhos, mulheres, bebes, gays, potes de iogurte, natureza, calca jeans NAO IMPORTA. Nao é um concurso de quem é mais coitadinho ou mais tirano, estamos falando de COLETIVO DE INDIVIDUOS, detesto essa coisa de “A Sociedade” como se fosse um ser, uma massa unica homogenea e disforme. Temos que ser contra a VIOLENCIA a IMPOSICAO da vontade de uns sobre a vontade de outros a despeito do bom senso, da bondade, da tolerancia, do respeito.. NAO DA CONCORDANCIA… com as diferencas. Ai sim a gente muda o mundo se nos unirmos em torno do ponto comum ao inves de espernearmos dentro de rotulos convenientemente disponiveis que vem com bandeira, discurso, acusacoes e tola sensacao de que estamos sendo melhores do que qualquer outro.

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