Como um menino aprender a ser um homem

25 de janeiro de 2011

Esses dias eu relia uns posts do É bom pra quem gosta e encontrei uma indicação a esse texto aqui, que me agradou a ponto de me por a fazer uma tradução instantaneamente. A leitura é válida porque traz de modo informal a reflexão sobre esse tema tão complexo que é a performatividade do gênero.

Como um menino aprende a ser homem
Michael Kimmel*

Como ativista e pesquisador do tema da masculinidade, frequentemente me perguntam: onde é que ela começa? Como é que um menino aprende sobre a masculinidade? Embora as imagens da masculinidade nos cerquem, nos bombardeiem diariamente, foi apenas observando as experiências do meu filho Zachary que eu vi com tanta clareza como alguém chega a entender que a masculinidade é uma performance, uma pose, uma postura, como ela é extraída de nós e o preço psíquico e físico que isso exige.

Abaixo estão vinhetas de três momentos diferentes do processo.

1. 3 ANOS DE IDADE
Zachary gostava de jogar um jogo que chamamos de “opostos”. Você sabe como é: eu digo uma palavra, e ele me diz o contrário. É simples e divertido, e já jogamos bastante. Uma noite, minha mãe estava nos visitando e nós três estávamos caminhando no parque da vizinhança jogando Opostos. Áspero/suave, alto/baixo, rápido/lento – enfim, já deu pra entender. Então minha mãe perguntou: “Zachary, qual é o oposto do menino?”.

Meu corpo inteiro ficou tenso. “Lá vem”, eu pensei: Marte e Vênus, o sexo “oposto”, o gênero binário.

Zachary olhou para sua avó e disse: “Homem”.

2. 8 ANOS DE IDADE
Quando o oitavo aniversário de Zachary se aproximava, eu e sua mãe perguntamos qual tema ele queria para a festa. Nos dois últimos anos havíamos comemorado na pista de gelo local – a mesma onde ele joga hockey com seu time aos sábados pela manhã. Ele rejeitou a ideia. “Já fizemos isso antes, pai. Além disso, eu patino lá o tempo todo”.

Outros temas que outros meninos da turma tiveram recentemente – uma festa com atividades e brincadeiras, um jogo de futebol ou uma caça ao tesouro – foram sumariamente rejeitaidos. O que ele poderia querer?

“Uma festa de dança”, ele disse finalmente. “Com um globo espelhado”.

Eu e sua mãe nos entreolhamos. Perguntamos: “Dança? Mas Zachary, você só tem oito anos”. “Não, não estou falando de dança“, disse ele, fazendo aspas com as mãos. “Estou falando de coisas como Cotton Eyed Joe, Virginia Reel, Cha Cha Slide e outros jogos de dançar”.**

Assim fizemos então: uma festa dançante – para seus 24 amigos mais próximos (a escola incentiva que convidemos toda a turma). Com uma parcela igual de meninos e meninas.

Todas as doze meninas dançaram entusiasmadamente. “Essa é a melhor festa do mundo!”, disse Grace. As outras exclamavam em concordância.

Quatro dos garotos, incluindo Zachary, dançaram junto. Eles também estavam se divertindo bastante.

Quatro outros garotos chegaram, observaram a cena e imediatamente se dirigiram a uma parede, onde cruzaram os braços sobre o peito e se recostaram. “Eu não sei dançar”, disse um deles. “Eca”, disse o outro. Eles assistiram e eventualmente tentaram interromper a dança, parecendo zombar dos dançarinos enquanto se enchiam de petiscos e não aparentavam estar aproveitando a festa.

Outros quatro garotos começaram a tarde dançando alegremente, sem nenhuma pitada de vergonha. Mas aí eles viram os garotos encostados na parede. E um a um, pararam, se dirigiram à parede e observaram o restante.

Só que não dava pra manter a pose por muito tempo. Depois de ver as crianças fazendo passos de dança hilários eles voltavam atrás, dançando como demônios, apenas para depois parar, observar os meninos da parede e voltar para a mesma.

Da pista à parede eles foram a tarde toda, alternando entre o entusiasmo e o receio, entre dançar alegremente e observar com desgosto. Meu coração doía por eles enquanto eu observava seu impasse entre serem crianças ou rapazes.

Ou entre serem pessoas ou rapazes. Serem pessoas capazes de uma ampla gama de prazeres – de acabar com os rivais no placar do hockey e fazer aquela exclamação vitoriosa em que se fecha os punhos e se puxa o cotovelo pra trás a dançar a quadrilha com seus parceiros no Cotton Eyed Joe. Ou serem rapazes, para quem o prazer se define agora por tirar sarro da alegria dos outros.

Oscilando entre a masculindade infantil e a adulta, eles estavam fazendo escolhas, e dava pra perceber o quão agonizante era fazê-las. Eles odiavam ficar na parede, e lá permaneciam até não conseguir aguentar. Mas uma vez que voltavam à pista, estavam agudamente conscientes que eram agora objetos do ridículo.

Lembrei disso esses dias quando outro jornalista fez uma pergunta que provavelmente me fazem uma vez por semana, cada vez que um jornal ou revista “descobre” que os homens estão confusos sobre o que significa ser homem atualmente.

Esse é o preço que pagamos para ser homens: a supressão da alegria, da sensualidade e da exuberância. E a compensação é se sentir superior aos outros estúpidos que tem a audácia de se divertir.

Eu torço para que meu filho resista à parede e siga dançando como criança.

3. 10 ANOS DE IDADE
Enquanto Zachary e eu íamos à escola, fiz-lhe a mesma pergunta que costumo fazer aos jovens na universidade e nas escolas de ensino médio. “O que você acha que significa ser um homem?”.

Zachary pensou por um momento. “Engraçado, pai”, falou. “Nós estavamos falando sobre isso no time de futebol. Um dos meus colegas disse ‘quem se importa se você está machucado? Você tem de ser homem, ser forte o suficiente pra jogar mesmo com dor’. Então eu acho que significa ser forte”.

Alguns passos depois, ele parou de caminhar. Em um daqueles momentos bem familiares para qualquer pai ou mãe, ficou ali parado, tão perplexo que dava pra imaginar as engrenagens trabalhando dentro da sua cabeça. “Na verdade, pai”, ele disse, “eu acho que não significa ser forte. Eu acho que significa fingir ser mais forte do que você é”.

* Kimmel é sociólogo, professor na State University of New York e tem várias publicações na área das masculinidades. Além disso, é respresentante de uma organização norteamericana de homens contra o sexismo, o NOMAS.
** Nota de tradução: pesquisei no YouTube e são danças num estilo quadrilha ou Macarena que costumam fazer bastante nos colégios norteamericanos. Se bateu a curiosidade basta clicar nos links que coloquei ali e tentar fazer também.


Eles contra nós contra eles

19 de outubro de 2010

Uma coisa é fazer uso de um discurso sofista e conservador, dizendo que “não se pode ser preconceituoso com o preconceituoso”. Outra coisa é se propor um tratamento crítico das discriminações, sem categorizá-las identificando bons e maus de forma maniqueísta.

Os evangélicos, ou crentes como alguns preferem ser chamados, formam um grupo que tem sua própria vivência com a discriminação. Nossa cultura católica não gosta desses filhos rebeldes e taxa-os de fanáticos, ignorantes, etc. O “eu” brasileiro é homem, branco, católico e hetero, e pensa que qualquer sujeito que não se encaixa nesses padrões tem de estar à margem.

O que acontece é que as essas “minorias” exclusas, na busca por inclusão, não quebram o padrão masculino, branco, católico e hetero: apenas transgridem o que lhe diz respeito e continuam operando na lógica que lhes esmagou. Temos, assim, feministas brancas, católicas e hetero excluindo lésbicas; homens negros, católicos e heteros menosprezando mulheres e homossexuais; homens gays, brancos e católicos discriminando negros e mulheres e assim vai. Assim, embora partilhem da experiência de ser o “outro” social, todos esses grupos não-masculinos, não-brancos, não-católicos e/ou não-heterossexuais, dentro das infinitas combinações que podemos ter aí, brigam entre si por preciosismos e casualidades, sem a percepção de que continuam todos subjugados e diminuídos no meio em que se encontram. No caso dos gays versus evangélicos isso é muito mais acentuado; se nem movimentos sociais conseguem se conciliar, que dirá um religioso e um social?

Além disso, temos um fator importantíssimo que é o teor da doutrina evangélica. Num tempo em que o politicamente correto predomina e ser preconceituoso é feio, cafona, fora de moda, muitos neopentecostalistas têm uma postura de clara discordância em relação às práticas homossexuais. A polarização entre os dois grupos vem ficando ainda mais nítida com os debates no Congresso, especialmente em torno do PLC 122/06, que se na opinião de LGBTs é importante para criminalizar a homofobia, na opinião de muitos religiosos é absurda por vetar elementos constituintes do seu código de crenças. Essa questão separaria definitavamente os interesses de ambas as minorias e faria das lutas de ambos coisas totalmente diferenciadas, certo? Errado.

Acontece que a voz evangélica no congresso, ao tentar barrar medidas pró homossexuais, além de evitar o progresso dos direitos humanos no Brasil comete um equívoco ao fazer o interesse religioso pesar mais que o político na balança das prioridades. Quero dizer que esses evangélicos não podem esquecer que operam sob uma democracia liberal, e que lutar contra qualquer tipo de liberdade – religiosa inclusive, como buscam fazer com os cultos afrobrasileiros – significa lutar contra a própria, de certa forma.

É claro que é uma coisa muito séria dizer que os evangélicos têm de deixar a política pesar mais que a religião na balança de prioridades. Sabemos, afinal, que as religiões não funcionam dessa forma em sua episteme. Mas historicamente tem sido assim; as instituições religiosas vão cedendo às transformações sociais e suas doutrinas são reinterpretadas. Sabemos, por exemplo, que esses grupos evangélicos – e mesmo os católicos tradicionais – são essencialmente contra o divórcio, mas se dentro das igrejas pode-se falar bastante disso, fazer do casamento novamente um laço vitalício não está em questão em âmbito sociopolítico. Ninguém foi preso por discordar do divórcio, assim como ninguém seria preso por discordar da homossexualidade; as leis apenas buscam gantir que o direito de se divorciar e de ter relações homossexuais não fossem negados aos integrantes da sociedade em questão. E que, no caso dos homossexuais, não houvesse possibilidade de alguém difamá-los, tratá-los como doentes e promover um discurso odioso contra eles na esfera social.

Tomo como equívoco sobrepor interesse religioso a político porque sabemos que os evangélicos formem paradoxalmente um grupo político com interesses próprios no atual Estado brasileiro e ao mesmo tempo não formam grupo nenhum, uma vez que estão espalhados da esquerda à direita, com direito a boas doses de centro. Então ao mesmo tempo que alguns dizem que se deve reconhecer que faz parte do processo democrático se formar uma junta evangélica que queira lutar por seus interesses, o argumento é falho porque esses senhores reconhecem a laicidade de seu ofício e se sujeitam a jogos partidaristas que no fim das contas pouco dizem respeito a princípios bíblicos.

Fui longe, dei um nó e agora volto pra enfim ir direto ao ponto: os interesses dos homossexuais e dos evangélicos são os mesmos; a garantia do reconhecimento de sua igualdade e da manutenção de suas liberdades dentro do nosso esquema civilizacional que é a democracia liberal. O que acontece é que determinada parcela do grupo evangélico não pensa dessa maneira, querendo garantir sua primazia de seu recém conquistado lugar enquanto homens, evangélicos, brancos e heterossexuais, lutando contra os direitos de mulheres, não-evangélicos, não-brancos e não-heterossexuais. Uma prática realmente nada nobre, mas que não determina que os crentes sejam cruéis, preconceituosos ou maus.

O que luto contra é uma perspectiva dualista, de que os evangélicos são os piores inimigos dos gays. Não o são, e pensar assim é uma coisa muito séria, muito feia. Evangélicos não são animais estúpidos e fanáticos. Talvez alguns sejam, mas alguns LGBTs também o são. Em verdade, é bem mais possível que um evangélico trate bem a uma lésbica do que uma pessoa que declaradamente “adora gays”, porque não só esse discurso de “adorar gays” é totalmente homofóbico como os mesmos evangélicos que pregam a homossexualidade como antinatural também pregam a solidariedade e o amor. Deve se considerar ainda que muitos desses crentes, por mais que na igreja sejam coniventes com certos tipos de discurso, não necessariamente compactuam com eles na prática e nem mesmo percebem isso. Não há que se rotular todas essas pessoas e presumir que elas pensam e vivem a religiosidade da mesma maneira.

Sou contra o preconceito contra evangélicos porque sou contra qualquer tipo de preconceito. É problemático assumir uma premissa como “aquilo no que eles acreditam é errado” porque é circular. Enquanto um diz que é errado ser algo, outro responde que é errado acreditar em algo. Cada surdo gritando sua verdade para fazer-se ouvir mais alto. Lutar pela garantia dos direitos humanos é lutar pela liberdade de opinião, e como venho enfaticamente falando desde o início do texto, isso é algo prezado por ambos os grupos. É claro que a linha entre a opinião e a difamação é tênue, coisa que todo esse debate em torno da lei da homofobia deixou bastante claro, mas antagonizar não é solução.

Atribuir a evangélicos o papel de nossos maiores inimigos é análogo a tapar o sol com a peneira. É mais confortável e mais fácil, afinal, apontar como opositor um pequeno grupo que declaradamente não gosta de homossexuais do que a grande maioria (inclusive a própria “comunidade gay”), cujo preconceito ganhou tanta malandragem que sabe até mesmo se disfarçar de progressista e pró direitos humanos. Não digo que não se deva brigar com a empreitada esquizofrênica dessa bancada no congresso e nem que não seja nítido o quanto pastores como Silas Malafaya promovem o preconceito. Apenas que não está nessas atitudes a origem da repressão a LGBTs, e que lutar SÓ contra elas, ver nelas o grande X da questão, é ilusório. E é, além de tudo isso, reafirmar um preconceito de origem católica. E entrar de vez na corrida maluca em que as minorias, preocupadas demais com a sua fatia do bolo, não se importam com todas as outras que também querem comer.


O retrato cor de rosa da Veja

10 de maio de 2010

Caros leitores da área do marketing, por favor, me auxiliem a compreender as últimas semanas da revista Veja. A julgar pela foto meiga de José Serra em uma capa e as frases inventadas atribuídas ao antropólogo Viveiros de Castro, a estratégia de divulgação do veículo guinou para o “fale mal, mas fale de mim”. A última capa da revista, que traz como destaque a crescente facilidade em assumir-se gay na adolescência, não escapa às críticas, nem mesmo – ou principalmente – de integrantes da tal “Geração Tolerância”.

Não estamos dizendo aqui que o fato retratado pela revista não exista. Ninguém seria tolo ao ponto de rejeitar a ideia de que assumir-se gay ou lésbica (a matéria não trata de bissexuais ou transgêneros) em nossa sociedade está mais fácil hoje. O assunto deixou de ser tabu, avançamos consideravelmente no plano dos direitos, conhecemos cada vez mais pessoas assumidas – na mídia, em nossas relações sociais – para termos e citarmos como exemplo. E o fato de os adolescentes conseguirem encarar cada vez mais cedo o momento de se assumir deve sim ser encarado como positivo. É um sinal de que essa identidade não é mais vista como um fardo a carregar ou algo a esconder.

O problema está na simplicidade com que a reportagem trata essa mudança, uniformizando a abrangência desse fenômeno da “tolerância” e apresentando-o de forma totalmente acrítica. Em primeiro lugar, o problema é de texto: o tom da matéria é quase comemorativo, e tende a minimizar as dificuldades encontradas pelos personagens. Nesse mundo cor de rosa, o preconceitopraticamente não existe mais. Em segundo lugar, a matéria cita uma série de pesquisas descontextualizadas, em que os números são jogados de forma a comprovar a hipótese dos repórteres. Podemos citar uma passagem:

“Em 1993, uma aferição do Ibope cravou um número assustador: quase 60% dos brasileiros assumiam, sem rodeios, rejeitar os gays. Hoje, o mesmo porcentual declara achar a homossexualidade “natural”, segundo um novo levantamento com 1.500 adolescentes de onze regiões metropolitanas, encabeçado pelo instituto TNS Research International.”

Novamente, não estamos descartando a possibilidade de o percentual de brasileiros a “rejeitar os gays” ter diminuído de 93 para cá. Apenas sustentamos que “achar a homossexualidade ‘natural’” não é um argumento suficiente para validar a ideia de que temos, ao menos entre os jovens, 60% de simpatizantes em vez de 60% de homofóbicos. Se pensarmos em natural como “referente à natureza”, um avanço pensar na homossexualidade como algo “natural” e não uma “perversão”, mas também devemos manter em mente o fato de que a cor também é determinada por fatores “naturais”, e isso não impede a existência do racismo. Por outro lado, se pensarmos em “natural” como “comum, rotineiro, sem dificuldades”, temos que levar em conta a compreensão da pergunta e a autocensura de quem responde. Para continuar citando pesquisas: uma pesquisa conduzida em 2008 pela Fundação Perseu Abramo – um dado que a matéria da Veja poderia ter pesquisado – constatou que cerca de 90% das pessoas concordava com a “existência de preconceito” contra os LGBT, ainda que aproximadamente 70% dos entrevistados negassem ser, eles próprios, preconceituosos em relação a essa população. Onde foram parar os intolerantes, então? Eles se revelam em outras perguntas: 92% dos entrevistados por essa pesquisa concordaram com a frase “Deus fez o homem e a mulher com sexos diferentes para que cumpram seu papel e tenham filhos”, 62% defendiam que “casais de gays ou de lésbicas não deveriam andar abraçados ou ficar se beijando em lugares públicos”, e 40% acreditavam que “a homossexualidade é uma doença que precisa ser tratada”.

Enquanto os números acima exigem o uso da interpretação e da compreensão da subjetividade dos envolvidos, existem números muito mais claros que a matéria em questão deixa de lado. Estamos falando das estatísticas levantadas pela ONG Conexão G no grupo de favelas cariocas conhecido como Complexo da Maré. Essa organização sustenta que nas comunidades do Rio ocorre pelo menos um incidente por dia de violência motivada pela sexualidade da vítima. Certamente, nem todos os ataques devem envolver integrantes da tal “Geração Tolerância”, mas já nas primeiras linhas da reportagem que o jornal O Dia fez sobre essa estimativa encontramos o depoimento de uma lésbica de 24 anos:

“Além de bater nos gays e travestis, os bandidos ficam ameaçando estuprar as lésbicas. Fazem um terror psicológico insuportável”, conta. “Quando descobrem uma lésbica no morro, dizem que a garota só se tornou homossexual porque não conheceu homens de verdade. E que darão ‘um jeito’.”

A reportagem, portanto, ignora o que se passa nas camadas mais pobres; a própria reportagem frisa que “A tolerância às diferenças (…) está se tornando uma regra – especialmente entre os escolarizados das grandes cidades brasileiras” (grifo meu). Esse retrato da juventude a partir de uma juventude específica, a juventude de classe média e principalmente classe média alta, não surpreende – afinal de contas, é a Veja. O que surpreende é notarmos que mesmo aqueles que são retratados pela reportagem sofrem ou sofreram alguma discriminação em virtude de sua homossexualidade. A família de Lucas El-Osta, por exemplo, levou o rapaz ao psicólogo e à igreja quando soube de seu interesse por outros meninos; Hector Gutierrez era chamado de “bicha” no colégio. Mesmo dentro do universo de Veja, a tolerância não é instantânea. Fora dele, ela não se estende a todos os casos (quem é LGBT, tem cerca de 20 anos e sofreu algum grau de bullying por isso no colégio, por favor “levante a mão” na caixa de comentários).

Uma outra característica importante a ser destacada nessa “tolerância” retratada pela revista é que ela se aplica à homossexualidade, mas não necessariamente inclui outras sexualidades. Os bissexuais foram deixados de fora da reportagem, e mesmo a fronteira tênue que confunde homos e bissexuais na adolescência não é sequer mencionada. Na “geração que rejeita os rótulos”, a reportagem só encontrou homossexuais. Se formos pensar em termos de identidade de gênero, o buraco é ainda mais embaixo. Se nem bissexuais entram na matéria, o que esperar em termos de identidades trans? Evidentemente, esse é mais um silêncio da “Geração Tolerância”. Podemos ir mais longe: uma entrevistada salienta: “nunca fiz o tipo masculino nem quis chocar ninguém com cenas de homossexualidade”, um casal afirma “andar de mãos dadas às vezes, nunca se beijando em público”. A tolerância dessa juventude é maior quanto menos visíveis estiverem as diferenças, e a própria sexualidade é vista como motivo para “choque”.

Recapitulando então: essa mudança de mentalidade não acontece em todos os casos, nem com todas as identidades sexuais; é um fenômeno que, como a matéria mostra, é característico de uma geração específica e, principalmente, não acontece em todos os lugares nem em todas as classes sociais. Não estamos dizendo que essa mudança não é importante. Só defendemos que ela precisa ser minimizada e compreendida dentro do contexto social em que ela acontece.

E agora que já demos à Veja a atenção que ela merecia, que tal pararmos de dar corda à estratégia de dar audiência para matérias ruins? A última Piauí tem uma reportagem bem legal sobre mudança de sexo!


Dogmas da Razão

23 de abril de 2010

Abril tem sido um mês de declarações absurdas vindas de sujeitos importantes, dotados de poder e visibilidade. Na segunda-feira da semana passada, dia 12, o cardeal Tarcisio Bertone afirmou que “diversos psicólogos e psiquiatras já declararam que não há relação entre o celibato e a pedofilia, enquanto muitos outros disseram, pelo que fui recentemente informado, que há a relação entre pedofilia e homossexualismo (sic)”. Quem também nos agraciou com sua sabedoria na última terça, 20, foi o presidente boliviano Evo Morales, dizendo que “o frango que comemos está carregado de hormônios femininos. Por isso, os homens que comem esses frangos têm desvios em seu ser como homens”.

Felizmente a contestação veio como resposta para ambos: contra o cardeal, ativistas gays de todo o mundo e o próprio Vaticano; contra o presidente, os exportadores de frango (!). É que a base argumentativa dos senhores, por mais científica que seja, é já ultrapassada, considerada ridícula pela comunidade acadêmica. Dentro dessa lógica, se Bertone e Morales fossem leitores mais assíduos, influenciados por um conhecimento atualizado e politicamente correto, não profeririam tais besteiras.

Mas será que o problema se resume a isso? Uma mera falta de atualização?

Quem tem alguma leitura sobre o tema da sexualidade sabe que a ciência natural foi, historicamente, uma das ferramentas mais eficientes na sua repressão. Nos séculos XVIII e XIX, quando a razão iluminista se abateu sobre os homens, as justificativas católicas para a privação do sexo já não eram satisfatórias, e o controle do Estado sobre o corpo se justificou pouco a pouco através de estudos cientificamente comprovados.

Muito se fala que o homem pré-moderno era tolo, imerso numa escuridão de ignorância que era gerada e operada pelo cristianismo, mas há algumas decadas há pensadores que apontam para uma simples mudança de paradigma: do religioso para o científico. Se antes a religião era a forma de enxergar e explicar o mundo, além de código normativo de conduta do ser humano, agora era vez da ciência ditar as regras. Tornou-se verdade absoluta e incontestável, com um lugar de alto prestígio nas sociedades.

A crítica aqui não é no sentido de se construir uma anarquia do saber, em que a intuição é mais válida que o empirismo, mas de se levar em conta que a episteme e o método são suscetíveis a falhas. Não se pode apenas tirar a religião do altar para substituí-la pela Razão. Deve-se destruir o próprio altar.

Os dois casos, do cardeal e do presidente, exemplificam bem essa substituição de prioridades. O preconceito com homossexuais é antigo, de origem cristã, mas a justificativa é científica. Até o representante de uma das maiores instituições religiosas do mundo reconhece que o mundo em que vive é cético, e, adepto de uma teologia que convive em paz com a ciência, se vale de argumentos científicos para tentar fazer imprensa e sociedade concordarem com seu preconceito, que tem origem religiosa. Mantém-se os valores e as construções sociais, alteram-se os meios para legitimá-las.

Os senhores bem poderiam buscar novos estudos biológicos e psiquiátricos sobre a sexualidade, buscando novas formas de embelezar sua homofobia, e talvez até tivessem sucesso em seu objetivo. Alguns cientistas naturais insistem em estudar as sexualidades e suas “origens”, pensando que podem explicar tudo. A antropologia, que por relativizar a cultura ocidental ensaiou um rompimento com os paradigmas iluministas, nos diz no entanto que a sexualidade é assunto cultural, manifestando-se de maneira distinta em cada sociedade e fora portanto do escopo dos estudiosos da natureza. Fato que o cardeal e o presidente, limitados pelos dogmas da Razão, estão inaptos a enxergar.


8 de março: um dia para pensar no sexismo

8 de março de 2010

Sempre que dizem que algo é “coisa de mulher” ou “coisa de homem” fico muito incomodado. Mulher é mais cuidadosa, homem tem mais coragem, mulher é mais delicada, homem é mais bruto, mulher é mais madura, homem é mais inteligente. E segue. Ad infinitum.

Talvez isso se relacione com o fato de eu ser um homem que tem uma das atribuições mais “de mulher” de todas: a atração pelo sexo masculino. Acostumadas a supor o comportamento e as aspirações dos indivíduos com base em gênero, muitas pessoas acabam ficando confusas, não sabendo o que esperar de mim. Dentro dessa esquemática, meu maior sonho seria copiar cada trejeito da mulher, afinal, por gostar de homens, não seria concebível eu cultuar uma masculinidade minha. Esperam, por fim, uma tentativa tosca de imitação do universo feminino, que resultaria em um dos mais clássicos estereótipos: a bicha.

Mas a minha preocupação com qualquer tipo de sexismo vai além de eu, como homossexual, ficar sem lugar na hora em que os homens vão jogar futebol e as mulheres lavar a louça. Tem muito pouco a ver com sexo, na verdade: o incômodo aqui é a total rejeição à individualidade dos sujeitos. Porque não é possível que desde crianças as pessoas já tenham de gostar de determinados brinquedos, desenhos e atividades voltadas para o seu gênero, sob o risco de serem chacotados em ambiente escolar e até familiar. Que as meninas sejam educadas para agradar, limpar e manter tudo em ordem, enquanto os meninos ganham as mordomias de suas mães – dando origem a uma sociedade em que o homem estupra e a mulher tem vergonha de reivindicar prazer sexual.

Toda vez que me xingam de viado por aí – e sempre, SEMPRE são homens que o fazem – me entristeço não só por mim, mas pelas mulheres que são esmagadas pelo esquema sexista e pelos homens que dele não usufruem. Mas me entristeço, principalmente, pelos homens e mulheres que o reafirmam diariamente, tão preocupados em ser machos ou fêmeas que esquecem de ser o que são.

Feliz dia.


Homomento discute a décima edição do BBB

29 de janeiro de 2010

Já faz duas semanas que o assunto da vez, tanto nos sites gays quanto na mídia em geral, é a décima edição do Big Brother Brasil: em especial, a presença de integrantes abertamente homossexuais na casa. A equipe do Homomento, que vem desde então discutindo suas opiniões sobre a questão, quis reunir algumas ideias soltas, sem o compromisso de um texto organizado e coerente. Convidamos todos à leitura e à discussão.

O óbvio ululante: a existência de homossexuais

Acho que o primeiro e mais óbvio ponto é que, bem ou mal, contamos com a presença de três homossexuais assumidos em um programa de altíssima audiência. É interessante compararmos a porcentagem de LGBTs no programa, de 17%, com a estimada para homos no “mundo real”, que varia de 10 a 19% de acordo com o contexto. Sabendo que a escala está mais ou menos correta, nos perguntamos: porque então toda a polêmica? Porque os apelidos como “Big Brother Gay”, se tem tantos lá dentro quanto aqui fora? A questão evidencia o quanto a homossexualidade é deixada à margem das discussões.

Trazendo a discussão à tona do lado de fora

Observar três homossexuais como ratos de laboratório pode ser instigante, e levar as pessoas a questionamentos diversos: “mas o que são homossexuais? Como eles são, o que fazem? Porque fazem? Qual a diferença entre eles e as outras pessoas?”. Por mais que seja condicionada pela edição do programa, essa curiosidade pode ser proveitosa.

61% das buscas na primeira semana de programa foram motivadas pela dúvida em relação a palavra Homofobia

Em um dos programas da primeira semana o participante Dicesar, conhecido como Drag Queen Dimmy Kieer, acusou outro competidor, Marcelo Dourado, de homofóbico. Em resposta, o Homomento foi selecionado para sanar, em diversas buscas, a seguinte questão: “Qual o significado de homofobia?”. Acredito que o post “Sobre a homofobia e seus significados” tenha suprimido a curiosidade de vários internautas, entretanto alguns curiosos mais práticos optaram pelo bom e velho dicionário, fato constatado pelo nosso blog:

O Priberam é o primeiro dicionário nas opções de busca do Google

Lidando com estereótipos

Enquanto Dicésar e Sérgio são gays mais característicos, com comportamento beirando o anedótico, Angélica é uma lésbica discreta e que não dá pinta nenhuma. Em outras palavras: notadamente, nessa edição o estereótipo da bicha é reforçado e o da sapatão já cai por terra. Mas pensemos um pouco além. Como se trata de um reality show longo, o comportamento dos participantes é exibido por semanas a fio, e é possível que os espectadores esqueçam um pouco da caricatura para enxergar as pessoas por trás delas, pondo em jogo vários preconceitos.

A ilha gay e a divisão forçada das tribos

A separação dos participantes em grupos também é intrigante. Não é preciso uma análise muito inteligente para perceber que a divisão não é exatamente lucrativa para os gays. Os LGBTS não criaram vínculos fortes de amizade entre si e preferiram se relacionar com pessoas de fora dos “Coloridos”. Até aí nenhum problema, afinal a intenção é o atrito, a grande falha na nossa visão é a segmentação forçada entre clãs, que reforça estereótipos e valida a marginalização do gay. A impressão do telespectador é que a repartição aconteceu da seguinte maneira “ok, temos três gays, gostaríamos de colocá-los em um nicho segmentado então vamos inventar outra denominação para os moradores que sobraram”.

Um diálogo que acompanhei entre a participante Angélica (assumidamente homossexual) e Cláudia (do grupo “sarados”) serve como exemplo. Na conversa a participante “sarada” falava que não entendia porque estava em seu próprio grupo porque em comparação a outros competidores, como por exemplo Eliéser (tribo dos belos), pouco frequenta a academia. Digo isso porque com exceção dos coloridos (em que todos compartilham algo: ser gay) nenhum outro grupo realmente tem alguma coisa em comum, visto que nem todos os “sarados” são realmente sarados, tão pouco os “belos” são todos “belos”, os cabeças nem comento, e os “ligados”, bom, os “ligados”, o que viria a ser “ligado”?

A normatização do politicamente correto

Uma contribuição que as edições anteriores do Big Brother já haviam trazido foi a vilanização da homofobia. Por incrível que pareça, todavia, não se sabe até que ponto isso é realmente positivo.

É nítido que na dinâmica do programa costuma-se construir heróis e vilões, simpáticos e malditos, coitadinhos e opressores. Nessa necessidade às vezes involuntária de divisão binária e estática, podemos observar uma série de comportamentos e posturas respeitosas a homossexuais que não se configuram exatamente a favor de esclarecimento e discussão por parte dos espectadores, mas como fomento à postura moralista e politicamente correta dos mesmos.

Condenar o comportamento de um participante abertamente homofóbico não significa em momento algum a aceitação automática do filho ou filha homossexual, por exemplo. Ou seja, não existe uma correspondencia real entre os valores aplicados ao programa de televisão e a vida prática de cada espectador. Por vezes a reprodução do comportamento padrão, como de condenação a atitudes homofóbicas, só respeita a necessidade de não se mostrar inadequado ao círculo social a que se pertence, sem haver o que se mostra realmente necessário, que seria a saudavel discussão do assunto.

Obviamente são casos e casos, culminando em alguns nos quais de fato existe dialogo e mudança positiva de percepção do outro. O que já suscita a pergunta: só esses casos já não tornam a iniciativa válida? A resposta fica a critério dos parametros de cada um.

A reprodução de opiniões é muito mais simples do que a real assimilação e mudança de postura. Resta a nós não torcer necessariamente para Sérgio, Dicésar ou Angélica, e sim para que esta postura amigavel da mídia e dos telespectadores não seja efemera tal qual tudo que resta das edições do Big Brother Brasil.

O universo externo gay

Esse post foi feito com muito carinho por toda equipe do Homomento. Agora que já opinamos, também queremos saber o que os leitores pensam sobre a presença dos gays na casa do Big Brother Brasil 10.


Sugestão de filme: If The Walls Could Talk 2 (ou Desejo proibido)

14 de janeiro de 2010

Hoje o Homomento traz uma indicação: If The Walls Could Talk 2 (2000), título tragicamente adaptado para “Desejo Proibido” no Brasil. Essa péssima adequação no nome já pode afastar alguns leitores, por isso peço que desconsiderem esse ponto falho. Para quem já assistiu vale a reflexão.

Eu poderia dizer que em ITWCT 2 o assunto principal são lésbicas, mas estaria sendo simplista (para não dizer ignorante). Para mim a temática é baseada na construção da família homossexual, com foco em relações entre mulheres.  A história é uma semi-continuação do If The Walls Could Talk (1996), que explorou a compreensão do aborto em diferentes períodos.  Já o If The Walls Could Talk 2 opta por uma narrativa segmentada em épocas, totalizando três histórias curtas, focadas em sentimentos e relacionamentos completamente diferentes uns dos outros. O resgate de emoções inaceitáveis (ou mascaradas na contemporaneidade) sustenta a capacidade reflexiva do filme, e essa é, para mim, a principal qualidade.

A primeira short history conta a história de duas lésbicas casadas por 50 anos em pleno 1961. As senhorinhas vivem em uma casa e levam um relacionamento duradouro e feliz, até que em um acidente domésticos uma delas morre.

A história de Abby (Marian Seldes) e Edith (Vanessa Redgrave) é a mais emocionante

A tragédia é ambientada na mesma casa que abrigou por anos aquela família pacificamente transgressora e que agora acolhe a solidão e o desespero da parte restante do casal. A concepção de família é completamente ignorada por todas as personagens que ficam à margem da trama, com exceção, é claro, da própria família: o casal de lésbicas. No mínimo emocionante.

A segundo história, de 1972, aborda o melhor tópico. Quando eu e minha namorada assistimos ficamos horas discutindo sobre o comportamento das personagens e a atualidade do tema. Bem resumidamente, Linda (Michelle Williams) conhece Amy (Chloë Sevigny) em um bar. Linda faz parte de um grupo feminista. As amigas de Linda recriminam o contato dela e de Amy por discordarem da forma como a nova namorada se veste. Amy usa roupas tipicamente masculinas e possui comportamentos e trejeitos que destoam dos princípios que, até então, regiam a vida de Linda. Mesmo se passando em 1972, o discurso verborrágico das lésbicas feministas é um retrato da ignorância e a discriminação do gay para com o próprio gay. A negação e a repreensão das lésbicas em relação a personagem de Chloë Sevigny  mostram que, mesmo indivíduos que teoricamente estariam predispostos a aceitar níveis diferentes de expressão/comportamento, e entender as ramificações infinitas da sexualidade humana, continuam, invariavelmente, a limitar o pensamento. No mínimo questionador.

O casal divertido: Sharon Stone e Ellen degeneresA terceira e última short history se passa no ano 2000 e narra a luta de um casal de lésbicas que desejam ter um filho. Fran (Sharon Stone) e Kal (Ellen DeGeneres, sim, a própria!) são atrapalhadas e engraçadinhas, o que acaba maquiando a narrativa meio bobinha. No mínimo divertido.

Fica a minha dica para quem gosta de filmes LGBT/drama. Segue abaixo o download em RMVB com as legendas em português:


Fernanda Young, Playboy e as mulheres

18 de novembro de 2009

Fernanda Young autografa sua edição da Playboy

Graças a um atraso na distribuição da Playboy, só ontem pude comprar (ou melhor, ganhar – thanks, wifey!) a edição cuja capa traz Fernanda Young vestida de coelhinha. E não, minha intenção aqui evidentemente não é a de fornecer um relato desnecessário e apelativo da minha interação com a revista. Na verdade, a escritora já poderia ter figurado no Homomento há mais tempo: em setembro, ela disse que tentou ser gay e não conseguiu. Recentemente, ao avaliar o impacto de seu ensaio entre nosotras, ela disse se orgulhar de ser atraente para as lésbicas. Além disso, um de seus romances, O Efeito Urano, publicado em 2001, trata de uma relação entre duas mulheres.

Mas nosso comentário à edição se deve a outro fato potencialmente homoerótico: tenho observado muitos comentários de mulheres héteros acerca dessa edição, e mesmo de homens que disseram que suas parceiras adoraram o ensaio. Esse interesse feminino pela Playboy deve-se, no meu entender, a dois fatores: o público-alvo da edição e a identificação com um determinado padrão de beleza.

O público fiel da Playboy critica a decisão editorial de retratar uma mulher “que nem bonita é” (visão que explicita a concepção de que a beleza feminina é loira e peituda). Eu, que não faço parte do público-alvo das revistas masculinas, posiciono Fernanda Young exatamente dentro do meu padrão de beleza: ela é intelectual, tatuada, forte, desbocada, segura dentro de seu próprio corpo. É a cultura (compreendida aqui como conjunto de valores socialmente compartilhados, não como formação escolar, que fique claro) de cada um que define o que lhe será bonito. Em entrevista à revista Quem (via ACapa), a escritora demonstrou ter consciência de que o público que comprará a sua Playboy não é o mesmo das demais edições da revista.

“O público que imagino que vá comprar minha revista é a pessoa que tem a intenção erótica de me ver nua, o gay que se interessa por mim, a pessoa que está chocada e quer me “chochar”… mas sei que muita mulher vai comprar! A gente gosta de se ver”

Sobre O Efeito Urano, a autora comentou que acha "muito libertária" a possibilidade de uma leitora se identificar com o amor entre duas mulheres

O fato de incluir mulheres no público-alvo desde a concepção do ensaio já é um diferencial em relação à esmagadora maioria dos produtos pornográficos. Salvo raras exceções, nenhuma delas no Brasil (que eu conheça, ao menos – vou adorar descobrir que estou errada, se alguém tiver novidades para me contar nos comentários), a pornografia é produzida por e para homens. O consumo de produtos pornográficos por mulheres é tratado como marginal, incidental. E se por um lado isso leva a um estranhamento geral da nudez masculina, por outro leva a uma maior familiaridade com o corpo da mulher. Na entrevista à Quem, a própria Fernanda Young admite essa relação com o nu.

“Não perco tempo vendo revista de homem pelado”, revela. “Acho nojento. Aquela coisa horrorosa de barriga tanquinho, músculos… É tão musculoso que fica com a cabeça pequena. Me lembra um açougue. E eu, como vegetariana, não gosto de açougues [risos]. Esteticamente, a mulher tem um corpo lindo. O ventre é lindo, a bunda é bonita. Não precisa ter atração, mas o feminino é belo.”

Beleza masculina e consumo de G Magazines e afins por mulheres (bem como o consumo de revistas masculinas por lésbicas) são temas que mereceriam um post à parte, e infelizmente tenho que deixá-los de lado nesse artigo que já começa a ficar muito grande. A questão é que a identificação é uma forma de sentir desejo e, por conseguinte, consumir pornografia. Se as mulheres não são sujeitos para as revistas masculinas, uma das formas de desfrutá-las é pensando não em possuir o objeto retratado, mas em como seria ocupar o seu lugar.

Encontrei, nos comentários da coluna de Arnaldo Branco na Revista Zé Pereira, uma avaliação dessa edição da Playboy que ilustra bem o que estou dizendo. É Marina, “uma mulher comum” como a própria se define, quem contesta o texto (bastante grosseiro) do cartunista, que critica a alegria das mulheres com a nudez da escritora.

Tenho certeza que a FY não quis salvar o erotismo visto pelos olhos dos machos reprodutores que coçam o saco e salivam quando as gostosas passam na rua com a calça jeans enfiada no rego. FY também não quis fazer um ensaio pseudo-intelectual, pois, como ela mesmo disse, isso não existe. Ensaio de nu na playboy é simplesmente um ensaio de nu na playboy. (…) Por fim, eu como mulher comum, adorei ver FY nua, e, pra mim, seu ensaio realmente me serve como uma tentativa de trazer à tona um outro tipo de erotismo: aquele que a gente aprecia e até se vê ali, aquele que tem um contexto e que chama atenção por isso. Nesse ponto, FY arrasou. (…) O belo é relativo e a maior graça de todas é justamente poder ter como escolher. Pra mim, mulheres com coxas de cavalo e alaranjadas de tanto bronzeamento artificial me dão um nojinho. FY me dá tesão. Você não concorda? Ótimo. Viva as diferenças. Mas todo mundo tem que ter a chance de celebrar isso, não?

Ao aparecer vestida na capa, FY deixa claro que o erotismo de seu ensaio vai muito além da nudez

O ensaio, de fato, traz um erotismo que não é o dos retratos ginecológicos. Acostumada a brincar com a cultura pop, Fernanda Young veste a icônica fantasia de coelhinha já na capa. Nas demais fotos, resgata outros elementos da cultura erótica – espartilhos, bondage, meias de seda. A produção caprichada não deixa que o ensaio caia na vulgaridade.

Mas o mais legal é a possibilidade, que podemos supor a partir da revista e das declarações da escritora após sua publicação, de que aquele ensaio não tenha sido pensado para seus leitores e sim para a própria Fernanda Young. Ela alfineta a ala masculina de seu público, dizendo que fica feliz ao notar que os homens continuam sentindo medo dela. Depois, provoca a totalidade dos compradores de sua Playboy: “São fotos eróticas. Espero que muita gente se masturbe. Vou ficar felicíssima se isso acontecer.”

Acima de tudo, fica a sensação de que Fernanda Young está se divertindo (e muito) com a repercussão de sua passagem pela publicação cujo nome tornou-se sinônimo de revista masculina. Para quem não treinou seu olhar para a crueza da pornografia, acho que isso – a demonstração de estar genuinamente gostando da coisa – é o que torna tudo muito mais interessante.


Caio, o amigo gay da Tina

16 de novembro de 2009

No começo desse ano o criador da Turma da Mônica, Mauricio de Sousa, deu uma interessante entrevista para a Veja. Nela, o quadrinista fala sobre a abordagem de temas mais sérios – como o divórcio, por exemplo – nos seus gibis, seja nos clássicos da Mônica e companhia ou no recente Turma da Mônica Jovem. Quem lê o Homomento já viu meus elogios à Adriana Calcanhotto por tratar crianças com naturalidade e meu recente apelo para uma educação sexual problematizadora: fica até redundante dizer o quanto simpatizei com o seguinte trecho da entrevista.

Acontece que nas casas de hoje se pode conversar sobre tudo: sexo, drogas, violência. Se o pai não puxa esses assuntos, o filho de 5 anos faz isso por ele. É preciso parar de tratar as crianças como seres inferiores, sem senso crítico, sem experiência de vida. Tudo pode virar tema. Não é preciso censurar, apenas deve-se tomar cuidado para usar uma linguagem correta.

O discurso é bonito, mas não paremos por aqui. No restante da entrevista, Mauricio conta como os pais da personagem Xaveco se divorciaram e a situação foi sutilmente introduzida nas histórias, não havendo nenhum caso de reclamação por parte dos pais. Elogios à parte, é necessário lembrar que estamos bastante aquém do tempo em que divórcio era causa para polêmica: não deixa de ser até bastante atrasada essa abordagem do autor. O modus operandi dele fica bem claro em outro momento da entrevista – justamente no que tange à homossexualidade.

Tem gente pedindo para eu criar um personagem gay. Esse tema ainda é muito novo. Mas eu sei que, no futuro, se essa tendência continuar, será natural ter um homossexual na Turma. No meu estúdio, digo que não devemos levantar uma bandeira e ir à frente de uma passeata. Devemos segurar a bandeira quando ela já está passando. Precisamos falar a língua do dia e da hora, mas tomando certos cuidados. Foi com essa fórmula que construí minha carreira.

Mais recentemente, em sua participação no Roda Viva, reiterou, como nos conta o ACapa: “[Personagem gay, só] quando a sociedade estiver, toda ela, aceitando e preparada para isso”.

Poderíamos fazer uma pausa para questionar um pouco as colocações (quando, afinal, a sociedade vai estar TODA pronta e preparada para isso?), mas não é para lembrar dessas declarações que estou escrevendo a postagem. É para falar do novo personagem do gibi da Tina: o Caio.

A primeira aparição do Caio foi no número 6 da revista da Tina, pela editora Panini, lançada em novembro de 2009. O blog Cultureba alerta na manchete – “Caio, o primeiro personagem gay de Mauricio de Sousa”. Sem acesso ao gibi, fui procurar, muito curioso, mais referências à tal história. O Cada um no seu quadrinholança um balde d’água, explicando que fica tudo meio implícito.

Pelo que entendi, a história é mais ou menos assim: a Tina marca um encontro com um amigo misterioso e o namorado dela fica morrendo de ciúmes no decorrer da história. No final, ela apresenta o Caio pro namorado e dá um discurso sobre como é comum homens e mulheres terem amizades sem segundas intenções. O tal Caio ainda arremata, dizendo que é comprometido e dando a entender que é com um rapaz que está presente. Confiram o tal quadrinho, escaneado pelo Cena G.

Como nos conta a Folha, “o assessor afirma que a história não pretendeu ser categórica no lançamento de um personagem gay. Ele levanta até a possibilidade de que ele seja bissexual, no entanto. Ele também assegura que a história e o personagem terá a devida continuidade e encaminhamento”.

Não sei até que ponto a personagem não foi criada pra agradar quem estava pressionando ou até que ponto ela está lá por tratar-se de uma revista de aparente menor visibilidade, mas devo admitir que fiquei positivamente surpreso. Até onde eu sei a questão homossexual está pegando fogo atualmente, então não deixa de ser uma afronta ao próprio método pouco corajoso do Mauricio de falar dos assuntos só depois da discussão em torno deles se abrandar.

Eu poderia até reclamar aqui do quão mal esclarecida está a situação de homossexualidade ali (as velhas migalhas que nos dão nas hqs para ficarmos quietinhos), mas prefiro esperar para ver o direcionamento da história do Caio, por se tratar do gênero infantil, que tem um monte de particularidades. Um pouco de otimismo não faz mal a ninguém, não é? Ou vocês acham que estou encarando com bom humor demais?


Educação sexual: um instituto necessário

11 de novembro de 2009

O estouro da AIDS nas décadas de 1980 e 90 fez com que a sexualidade tivesse de ser abordada com seriedade, e em âmbito nacional, no Brasil. Canais de televisão, campanhas publicitárias e panfletos informativos necessitavam, por uma questão de saúde pública, informar a população a respeito da nova doença. Ao mesmo tempo que se diz sensualizado e vende essa imagem para o exterior, o brasileiro, no entanto, tem sérias dificuldades para lidar com seu sexo, acabando por instaurar uma visão moralista e culpabilizadora do HIV e das relações sexuais de modo geral.

Foi essa perspectiva que adentrou o espaço educacional recente: Uma educação sexual que alertou a respeito dos males do sexo em tom de ameaça, reproduzindo para jovens o discurso que corria solto no país. Progressivamente, com o tempo, o clima se abrandou e os os tons se alteraram, fazendo da palestra escolar com o sexólogo um momento mais científico do que qualquer outra coisa.

Ainda assim, acredito que não só a atual abordagem educacional para a sexualidade é insatisfatória como noto que os ensaios de avanço nesse campo têm sido bombardeados por críticas diversas. Quis, por isso mesmo, dissecar um pouco algumas prerrogativas famosas no que diz respeito à educação sexual. Se você tem interesse pela discussão, convido-o à leitura.

“Educação sexual é falar de sistema reprodutivo, camisinha, anticoncepcional, etc.”

Sim, educação sexual é falar de sistema reprodutivo, camisinha, anticoncepcional, etc. É essencial que se conheça o corpo e suas funções, a origem dos impulsos sexuais e, o mais importante, que se valorize o sexo seguro. Mas não, educação sexual não é isso.

Por sexualidade não se compreende apenas o ato sexual em si, mas uma interação humana cheia de significados culturais. É nessa interação que vão se manifestar e perpetuar, também, convenções sociais como o machismo, a misoginia, a homofobia. O educador que apenas transmite a informação – “esse órgão encaixa naquele”, “use camisinha” – não se preocupa com a maneira como o aluno vai lidar com ela, e em um contexto em que a mídia é altamente sexualizada e que a pressão social para se iniciar a vida sexual cedo é cada vez maior, é necessário o mínimo esclarecimento.

A sexualidade, quando mal desenvolvida, pode se tornar um grande problema na vida de uma pessoa. Noções equivocadas e parciais de gênero e identidade sexual geram preconceitos, seja em relação ao outro ou a si próprio. Querendo ou não, antes de chegar à escola o aluno já tem a sua cultura sexual – que pode ser baseada na combinação das referências (ou omissões) de seus pais ao assunto com as referências que a mídia e os amigos lhe trouxeram. Isso nos remete à visão do professor como mediador entre o conhecimento prévio do aluno e o conhecimento erudito que está no programa. É necessário, dessa forma, problematizar a educação sexual: ir além da reprodução do biodiscurso.

“A educação sexual vai depravar a criança e macular a inocência infantil”

Importante colocar que a questão aqui não é adiantar ou retardar a presença das relações sexuais na vida do aluno, através de estímulos ou represálias. É lidar com a sexualidade, ponte cultural entre o social e o biológico, da maneira mais saudável possível para o crescimento individual.

Independente do contexto de sua criação, todo ser humano agrega, ao longo da infância, valores ligados à sexualidade. No caso da nossa sociedade ocidental, qualquer menina sabe já aos 4 anos de idade, por exemplo, que meninas gostam de cor de rosa, de brincar com bonecas e de determinados desenhos animados. A identidade de gênero, que posteriormente vai dialogar com uma identidade sexual, já está sendo estabelecida até mesmo antes da criança nascer, quando os pais escolhem a cor das roupas de acordo com o sexo do bebê.

Educar sexualmente significa não pré-estabelecer comportamentos adequados para feminino ou masculino; ajudar a criança a crescer de maneira natural e saudável, orientando-a à valorização do que é bom e correto para um ser humano a fazer, e não a associações de conduta por gênero. Vamos trabalhar com exemplos: ao invés de dizer que “meninas devem ser delicadas e estar sempre arrumadas”, estimular a boa educação e a autohigiene; ao invés de dizer que “meninos têm de ser durões e não podem chorar”, deixar claro que é sempre bom respeitar e ser respeitado. Surpreendentemente, isso faz parte do todo de uma educação sexual. E surpreendentemente, um menor estímulo à autoafirmação da identidade de gênero pode sim levar as crianças a serem até menos sexualizadas – justamente por não estarem sendo pressionadas a se preocupar com essas questões.

Em suma, com uma educação preocupada com a questão da sexualidade, a escola pode se tornar inimiga da mídia sexualizada e sexualizadora, como catalisadora de todo o conhecimento equivocado que a criança pode trazer de suas experiências prévias. E cumprir, assim, seu papel essencial: o de educar.

“A educação sexual vai disseminar a homossexualidade”

É sabido que o ambiente escolar ainda é bastante hostil às crianças e adolescentes que apresentam comportamento adverso ao atribuído ao seu gênero – para não falar do já constatado preconceito com os professores gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros. Uma reportagem da Agência Brasil de julho de 2009, realizada no Distrito Federal, conta que não só a discriminação é violenta como afeta o desempenho dos alunos, chegando muitas vezes a afastá-los da sala de aula. Faz-se urgente a necessidade de estimular a aceitação, tanto de dentro do aluno como de fora, vinda dos colegas: falar, nas escolas, que a sexualidade pode ter caráteres diversos e que não há nada de errado nisso.

Quando se fala na abordagem da diversidade de identidades sexuais em ambiente escolar, a questão é: será que uma relação liberal desses assuntos vai estimular as crianças a se identificarem como homossexuais? Sem a convenção da heterossexualidade como o “certo”, as sexualidades infantis vão se confundir e “desviar”? Para responder essa pergunta, precisamos considerar alguns pontos.

A “origem” da homossexualidade é assunto para controvérsia. Ciências naturais como a biologia e a psicanálise têm tentado explicar, através da genética e de traumas infantis, sua recorrência, mas os estudos nessa área mostram-se duvidosos ou pouco verificáveis. Os avanços das ciências humanas no estudo da sexualidade apontam para uma distinção entre sexo, como propriedade e objeto de estudo das exatas, e sexualidade, como área propriamente humana e cultural. Dessa maneira a origem da identidade de gênero e o comportamento sexual, se sujeitada à metodologia das exatas, só poderia gerar resultados insatisfatórios.

Uma das únicas certezas em relação aos homossexuais advém dos estudos de Kinsey (1949), que apontam para a estimativa de que 4 a 14% da população, independente de seu contexto, teria comportamento homossexual. Pesquisas recentes alteram os números para 1 a 20%. Até hoje os números se confirmam: o censo de 2009 dos Estados Unidos aponta para 10% da população como homossexual, enquanto no Brasil uma pesquisa de 2009 do Ministério da Saúde sobre o comportamento sexual do brasileiro revela que 10% dos homens entrevistados já teve relações com membros do mesmo sexo e que 5,2% das mulheres também o teve. Percebe-se que, mesmo comparando os Estados Unidos e o Brasil, países bem díspares no que diz respeito ao reconhecimento institucional da homoafetividade, os números persistem. Outra estimativa interessante realizada por um grupo de apoio para filhos de casais homossexuais diz que apenas 10% das crianças criadas em ambiente familiar gay tende a também sê-lo. Assim, seja em ambiente majoritariamente homo ou heterossexual, a porcentagem de Kinsey se repete.

Abordar a diversidade sexual na escola não significa estimulá-la ou tampouco proferir um discurso demagogo sobre como não devemos ser preconceituosos. Não é querer subverter a normatividade hetero para uma homossexual. É, sim, inserir um questionamento a respeito de gêneros, identidades e papéis no mundo em que vivemos. É preparar o aluno para se deparar com a realidade que está lá fora, que não é a dos 90% heterossexuais nem a dos 10% homossexuais, mas a de todo o conjunto social. Torná-lo não tolerante com as diferenças – pois a tolerância admite, não compreende -, mas percebedor das igualdades.

Uma conclusão: se um só quer, todos não fazem

Acredito que um projeto de educação sexual só vá fazer total sucesso se inserido em um contexto favorável, em que Estado, família e meios de comunicação ajam em conjunto no combate às idéias equivocadas de sexo e sexualidade. É natural que, caso ilhada em ambiente preconceituoso, qualquer iniciativa com uma nova proposta de abordagem dessa temática vá encontrar reprovação e mesmo indignação alheia. Para evitar isso seria necessário que o Estado reconhecesse institucionalmente todas as sexualidades, que se realizassem mais políticas públicas favoráveis à igualdade de gênero e que a mídia abordasse essas questões com mais responsabilidade. Por isso faz-se necessária não apenas essa nova educação sexual, dentro da escola, como também todo um trabalho reivindicatório fora dela, na busca por uma sociedade que lide com sua sexualidade não como normatizadora de regras comportamentais, separada em categorias identitárias, mas como o que ela verdadeiramente representa: um caminho para alcançar tanto a reprodução humana quanto o simples prazer físico.