A transgressão do gênero

8 de outubro de 2009

É sabido que tudo o que desafia o sistema binário de identidades de gênero (homem X mulher) e sexualidade (hetero X homo) gera confusão. A bifobia – ou preconceito com bissexuais – tem sua explicação basicamente na dificuldade das mentalidades em conceber gostos, comportamentos e atitudes ditas opostas como presentes em um mesmo indivíduo (o texto que postamos no Dia Internacional da Bissexualidade se alonga nesse aspecto).

Quando estamos falando da última letrinha da sigla LGBT, a confusão ocorre em outro sentido. É um mas também é outro? É outro com um pouco de um? É aquilo, gosta disso mas ao mesmo tempo pode ser aquele primeiro?

Menos com a intenção de rotular comportamentos do que de buscar um breve esclarecimento em relação a conceitos que estão arraigados no vocabulário comum, buscamos salientar alguns pontos a respeito dessas terminologias que, é importante lembrar, referem-se a identidades de gênero, que não são a mesma coisa que orientações sexuais.

  • Transgêneros: Esse conceito inicialmente referia-se aos transexuais que não passaram por uma transição, sendo ampliado posteriormente como um “conceito guarda-chuva” para incluir todos aqueles que, de uma forma ou de outra, desafiam os papéis de gênero vigentes por apresentar-se de maneira (total ou parcialmente) diversa do que determina seu sexo biológico. Dessa maneira, todas as “categorias” descritas abaixo enquadram-se na classificação de transgenerismo. Quem porta uma identidade de gênero correspondente ao seu sexo de nascimento é chamado cisgênero.
  • Transexuais: A definição mais corriqueira e simples, nesse caso, está bem correta: são os “homens nascidos em corpo de mulher” (os transhomens, ou trans FTM, do inglês “female-to-male”) ou “mulheres em um corpo de homem” (as mulheres transexuais, ou trans MTF, de “male-to-female”). Nesses casos, a identidade de gênero – ou seja, os papéis “de homem” ou “de mulher” que um indivíduo assume para si, portando-se e apresentando-se de acordo com determinado gênero – está em desacordo com o sexo biológico do corpo. Nos casos em que essa dissonância provoca depressão e frustração, caracteriza-se a disforia de gênero. Embora pareça rude falar em um distúrbio da identidade de gênero, o “tratamento” que permite uma vida satisfatória para essa população, através de substituição hormonal ou mesmo cirurgia de redesignação sexual, seria impossível se não houvesse uma classificação de tal condição como “doença”. A ideia de que transexuais são só aqueles que passaram por essa cirurgia, no entanto, é incorreta, até porque muitos transhomens dificilmente realizam outro procedimento além da retirada das mamas. Muitos transexuais abandonam a “comunidade” (e até a identidade transexual) após concluída sua transição, passando a viver como quaisquer outros homens e mulheres heterossexuais. Isso explica boa parte da invisibilidade desse segmento da população LGBT.
  • Travestis: A palavra “travestismo” originalmente refere-se ao ato de vestir-se com as roupas do gênero diverso daquele ligado ao sexo biológico do indivíduo. No Brasil, a palavra “travesti” ganha outro significado, designando pessoas cujo sexo biológico é o masculino, mas cuja identidade de gênero é feminina. As travestis diferem-se das transexuais pelo fato de sua identidade não ser exatamente de mulher, mas algo “no meio do caminho”: enquanto transexuais femininas frequentemente expressam desgosto em relação aos seus genitais, muitas vezes amputando-os por conta própria se não têm acesso a programas de aconselhamento, as travestis convivem bem com o pênis, embora modifiquem o corpo para ter uma aparência mais feminina (muitas vezes colocando a saúde em risco devido ao uso de silicone industrial, que não é adequado para cirurgias). As travestis formam a categoria de transgenerismo mais conhecida entre os brasileiros, e sem dúvida constituem a população mais oprimida entre os LGBT, sendo que muitas delas acabam trabalhando como profissionais do sexo. Algumas transexuais marginalizadas acabam na mesma situação, deixando de passar por uma transição para viver plenamente como mulheres devido ao fato de necessitarem do pênis para trabalhar.
  • Genderqueers: Também conhecida como “Intergender” e “Genderfuck”, essa definição da identidade de gênero ainda não é muito conhecida no Brasil, embora seus representantes estejam em todos os lugares (ainda que inconscientes disso). Os genderqueers recusam o sistema binário de gênero (ou seja, o padrão que só admite homem X mulher) e não raro apresentam-se de maneira diferente a cada situação. Parece estranho? Muito estranho? Então pense na bee pintosa que eventualmente fala de si mesma no feminino, ou na butch de aparência totalmente masculina, que se apresenta com um nome de mulher e uma identidade cambiante entre o feminino e o masculino. Agora não parece nada de outro mundo, certo?
  • Intersexuais: Antigamente chamados de “hermafroditas”, são aquelas pessoas que apresentam genitália ambígua ou têm presentes as genitálias masculina e feminina. Essa é uma condição biológica, ou seja, refere-se ao sexo com que a pessoa nasce, que nesses casos não é de fácil determinação. Por isso mesmo, é comum que alguns intersexuais vivam como genderqueers, alternando “fases menino” com “fases menina”, o que não impede que essas pessoas possam também identificar-se como homens ou mulheres, vivendo de acordo com todas as orientações sexuais já citadas.
  • Nota: Como a ideia aqui não era de me alongar nas definições, optei por anotar somente aquelas que dizem respeito à identidade de gênero “no dia a dia”. Sobre identidades que se manifestam na cultura de forma performática, como no caso de transformistas e drags, recomendo a leitura do ABC das Identidades elaborado por Luciano Berta, estudante de Antropologia que estuda o transformismo.

    (Introdução redigida pelo Pedro)