Dia do Orgulho Lésbico: entrevista com Míriam Martinho

19 de agosto de 2009

Em 1983, no dia 19 de agosto, as lésbicas que frequentavam o Ferro’s Bar, em São Paulo, revoltaram-se contra a discriminação que as ativistas do Grupo de Ação Lésbico-Feminista (GALF) sofriam no local. A ocupação do bar é considerada o “Stonewall brasileiro“. Por isso, a data de 19 de agosto é celebrada como o Dia do Orgulho Lésbico desde 1996 (embora uma parte do movimento lésbico tenha decidido comemorar o dia 29 de agosto como Dia da Visibilidade Lésbica, o que gera polêmica até hoje).

A comemoração desse dia se torna ainda mais importante em 2009 porque o movimento lésbico brasileiro completou 30 anos no último mês de maio. Para marcar esse dia, conversamos com Míriam Martinho, ativista do GALF que participou da ocupação do Ferro’s Bar. Atualmente, ela escreve nos blogs Contra o Coro dos Contentes e Memória/História MHB-MLGBT, e edita o site lésbico Um Outro Olhar.

Como surge o Grupo Lésbico-Feminista? Quantas mulheres faziam parte do coletivo, na época? Quais foram suas primeiras ações?
MM: O Grupo Lésbico-Feminista surgiu em maio de 1979 quando as mulheres do Grupo Somos de Afirmação Homossexual, de São Paulo (primeiro grupo homossexual do Brasil), foram convidadas a redigir uma matéria sobre lésbicas para o jornal Lampião da Esquina, publicação de temática homossexual do Rio de Janeiro que circulou de 1978 a meados de 1981. Após a publicação dessa matéria, decidiram continuar juntas e formaram o primeiro grupo lésbico brasileiro, chamado Grupo Lésbico-Feminista (LF), cujo coletivo se desfez em meados de 1981. Duas remanescentes deste coletivo, resolveram dar continuidade a organização especificamente lésbica e fundaram o Grupo Ação Lésbica Feminista (outubro/1981).

O LF surgiu dentro do Somos, dentro de um jornal gay. Até hoje as lésbicas reclamam de pouco espaço e visibilidade no movimento homossexual. Foi difícil abrir espaço para as demandas lésbicas no movimento?
MM: Sim, foi difícil. Nem tanto na primeira geração do movimento homossexual (a da década de 80), pois o feminismo estava no auge e influenciava todo mundo, inclusive os homens homossexuais que já pensavam na especificidade lésbica e faziam paralelos entre a questão da homofobia e a situação da mulher. Mais na segunda geração, a da década de 90, quando o movimento homossexual renasce das cinzas. Foi preciso uma batalha campal para simplesmente inserir a palavra lésbica no nome do encontro nacional em 1993. Hoje não sei dizer o quanto as reclamações das ativistas lésbicas sobre mais espaço e visibilidade no movimento homossexual também não são consequência da relativa ausência das mesmas no MLGBT. A maioria vem se reunindo fundamentalmente em separado e em ligação com o movimento feminista, então fica difícil saber o quanto essas queixas procedem. Os gays tendem a ser gaycêntricos mesmo, mas se as lésbicas também não estão presentes para questionar essa situação com pertinência, a tendência é que ela se mantenha.

Pelo que li no seu livreto sobre os 30 anos do movimento lésbico, vocês já enfrentavam algumas dificuldades para vender o ChanaComChana no Ferro’s Bar há algum tempo… qual foi a “gota d’água” para o levante em 19/08/1983?
MM: A gota d’água foi no dia 23 de julho de 1983, quando o dono do bar, o segurança e o porteiro tentaram nos pôr para fora do Ferro’s, puxando a gente pelo braço, dando empurrões. Nós resistimos, e as mulheres que estavam no bar nos apoiaram. Eles chamaram a polícia que extraordinariamente permitiu que a gente ficasse por lá naquele dia, mas naquela base do só hoje e nunca mais. E fomos proibidas de voltar a vender o boletim lá, embora se vendesse de tudo no bar, inclusive substâncias ilícitas. Só não podia vender publicação de lésbica num bar sustentado por lésbicas. Daí organizamos o levante para acabar com a proibição.

Depois desse incidente, as lésbicas continuaram frequentando o bar? Como foi a repercussão da invasão na mídia?
MM: Não só continuaram como houve um acréscimo de tribos lésbicas ao público do bar, pois as feministas homossexuais passaram a frequentar o “pedaço” – como se dizia – também com mais frequência. Em relação à imprensa, houve uma grande repercussão na mídia porque foi a Folha de São Paulo que cobriu a invasão e com um enfoque positivo, coisa inédita no período. Outros jornais e a revista Visão (da época) reproduziram a matéria e reverberaram o assunto.

A invasão do Ferro’s Bar é bastante semelhante ao levante de Stonewall dez anos antes, considerado um marco para o movimento homossexual. Mas o 19 de agosto não costuma ser lembrado com tanto destaque pela imprensa gay brasileira quanto o 18 de junho, e mesmo as lésbicas têm mais uma data oficial para celebrar (29 de agosto, Dia da Visibilidade Lésbica). Você não sente que o caso do Ferro’s Bar é pouco valorizado?
MM: O dia 19 de agosto foi lançado oficialmente em 2003 e novamente divulgado pela Folha de São Paulo, com as matérias sendo replicadas por outros jornais, dando grande repercussão ao assunto. Mas o pessoal do dia da visibilidade, que havia sido proposto em 1996, mas não comemorado efetivamente, ficou temeroso que o 19 de agosto sobrepujasse seu dia e iniciou uma grande propaganda contra a data do orgulho, encontrando respaldo e repercussão na conjuntura política que se iniciou em 2003 e está aí até hoje. O dia da visibilidade se tornou então a data oficial das ativistas lésbicas dessa conjuntura que são majoritárias. Então foi essa propaganda contrária que determinou e ainda determina a valorização inadequada do dia do orgulho. Agora, as pessoas que combatem a visibilidade do dia do orgulho são como aquelas que caíram numa areia movediça: quanto mais lutam contra mais rápido a credibilidade delas afunda, pois o levante do Ferro’s é um fato histórico indiscutível. De qualquer forma, já se percebe que algumas pessoas vêm contestando esse silêncio imposto – que de fato é constrangedor para tod@s – e passando a dar o valor que o dia merece.

Para encerrar: As lésbicas ocupam cada vez mais espaço na mídia (em novelas, com seriados como The L Word, com portais como o Dykerama e o Parada Lésbica, além de uma editora própria, a Malagueta). Bem ou mal, a “visibilidade” lésbica avança. Em termos de “orgulho lésbico”, o que temos que conquistar ainda?
MM: Bem, como costumo dizer, sem orgulho não há visibilidade. Essas manifestações de visibilidade que cita são fruto do orgulho de lésbicas que têm a coragem de ser explicitamente lésbicas numa sociedade que insiste em dizer que deveríamos nos envergonhar de amar outras mulheres. Lésbicas sem orgulho não têm visibilidade. Contiuam cultuando o enrustimento, a vida dupla, a falta de integridade e pagando um preço muito alto em termos de qualidade de vida por isso, além de colaborar com o preconceito. Pior: ainda são a maioria infelizmente. Então continua havendo muito que conquistar em termos de orgulho e consequentemente de visibilidade. Feliz dia do orgulho lésbico!