A crise da cultura gay monolítica – Parte 3

24 de agosto de 2009

No último texto, atribuímos à internet o papel de agilizadora da “explosão pós-moderna do sujeito” (como comentado pela Carolina e pelo Luan) no caso da comunidade LGBT: sites de relacionamento possibilitando críticas consistentes ao mainstream gay, seguidas de uma gaytificação (termo já utilizado anteriormente para definir a criação de um gueto gay, mas que eu emprego aqui especificamente para definir a guetificação dentro do gueto gay). A seguir, acompanhamos um pouco do debate dos ativistas, que parecem intrigados com o acontecimento, e enfim concluímos nossa trajetória, refletindo sobre os proveitos que podemos tirar da gaytificação.

Submundos

Acompanhei durante julho uma discussão interessantíssima entre colunistas de veículos LGBTs. Tudo começou com o artigo Take Back the Night, publicado na Out, em que Joshua David Stein disserta sobre como novas festas gays com o intuito de serem diferentes – uma delas inclusive com o slogan “uma festa gay para quem odeia festas gays” – têm surgido nos Estados Unidos. Vai além do óbvio, arriscando um significado para o fato: enquanto todos os tipos de pessoas – de indies a nerds gays – juntam-se formando grupos próprios cada vez mais numerosos, identificar-se como gay não é mais interessante ou útil como era. Nós podemos ter várias identidades simultaneamente. Na sua opinião, também, a internet agiu como propulsora da dissolução da vida gay noturna monolítica, unindo homossexuais por interesses comuns diferentes dos libidinosos.

Brian Moylan encara com certa melancolia essa dissolução. Na resposta ao texto de Stein, chamada Love of Gay Bars will Tear Us Apart, Again (algo como “O amor dos bares gays vai nos separar novamente”, em menção à música do Joy Division), diz:

Um dos maiores segredos da comunidade gay é que não existe uma comunidade gay. A população gay é feita de pequenas facções divididas por raça (sic), etnia, tipo físico, status sócio-econômico e se eles gostam ou não de um bom remix de dance. A única coisa que eles tinham em comum era ter de ir à mesma grande discoteca ao fim de semana atrás de drogas e sexo.

Não podemos deixar de considerar que, ao menos na primeira colocação, Moylan é muito feliz: a homogeneidade não é o forte da comunidade gay. Ele tem dificuldade, apenas, de enxergar que não é tão fácil, simples ou agradável para todas essas facções misturar-se. Em primeiro lugar, a utilização de drogas não é um interesse intrínseco a gays, e associá-los dessa forma é uma atitude preconceituosa. Em segundo, certamente todos os homossexuais precisam conhecer gente e fazer sexo, mas não necessariamente se sentem à vontade para isso em ambientes com música ensurdecedora. O colunista não tem o tato para perceber fenômenos como a raiva interna desenvolvida pelos gays diferentes e a dupla repressão sofrida por eles, e a reação de Zack Rosen, típico gay diferente e um dos fundadores do The New Gay, a esse texto foi furiosa:

Uma cultura baseada em sexo não é uma cultura. É uma necessidade compartilhada. (…) É importante notar que essas dissidências ainda são gays. Esses homens não abandonaram a nave mãe por uma festa de heavy metal onde eles terão, novamente, de esperar sinais positivos o suficiente para terem certeza que seu objeto de afeição não vai lhes dar um soco. Ao invés disso, eles fizeram o que os gays deveriam ter feito desde o início dos tempos: redimensionado o mundo em uma versão menor que fosse exclusivamente sua. Todos os bares, bairros e cafeterias gays são baseados nesse princípio.

Eu não acredito que seja o fim da “cultura gay”, mas o renascimento de uma cultura real, sem necessidade de definições, feita de homossexuais que agora podem ir atrás de seus interesses diversos sem ter de sacrificar sua sexualidade ou segurança. É uma coisa boa.

O discurso de Rosen não deixa de ser bonito, mas é contraditório em um aspecto: como se pode afirmar que uma cultura está nascendo quando na verdade seus integrantes estão cada um indo para o seu canto? Não seria melhor incutir a noção de efervescência de várias subculturas, todas gays?

Vimos três reações diferentes para a gaytificação: estranheza, melancolia e alívio. Cada qual observando a crise da cultura gay monolítica pela sua perspectiva, seja a de gay integrado ao esquema dos clubes noturnos ou de gay pertencente ao circuito alternativo. Será que, nos isolando em bares e fóruns para “gays que gostam de determinadas coisas” não vamos apenas alimentar discordâncias do gênero, nos degladiando ainda mais do que quando suprimidos dentro da mesma boate? O que, afinal, significa a gaytificação?

Vamos refletir um pouco.

O trecho abaixo é de um artigo que refere-se a um único gueto gay, mas acredito que não perca a validade no caso de suas diversas ramificações:

o “gueto” não somente amplia a oportunidade de encontrar parceiros e viver experiências sexuais, mas também pode contribuir decisivamente para reduzir os sentimentos de desconforto e culpa em relação à própria sexualidade, reforçar a auto-aceitação do desejo e, eventualmente, a disposição para “assumi-la” em âmbitos menos restritos.

Com certeza esse efeito positivo se potencializa nos grupos menores e ainda mais direcionados para públicos específicos. A lógica é que, encontrando semelhantes que encaram as mesmas dificuldades e têm os mesmos gostos, as pessoas sentem-se mais felizes e à vontade consigo mesmas. São inegáveis, por fim, os benefícios dessa fragmentação cultural.

Se Zack Rosen propõe que redimensionemos o mundo heterossexual, tão cheio de segregações mal-resolvidas, eu proponho que tentemos construir um ainda melhor. Se a tendência natural é nos separarmos em gays nerds, gays roqueiros, gays judeus, gays cristãos, gays indies e o raio que o parta, que o façamos sem comodismos, e de maneira consciente. Consciente de que sim, precisamos conhecer pessoas parecidas conosco, mas que respeitar os outros é sempre muito bom. E consciente, principalmente, de que se ainda precisamos do adjetivo “gay” antes dos nossos status, incapazes de nos integrarmos ao que seria o circuito nerd, roqueiro, judeu, cristão e indie do mainstream, é porque ainda tem muito a ser feito nesse mundo heteronormativo e preconceituoso.